Relíquia da fé: São Sebastião e seu santuário / Entrevista com Frei Almir da Silva

“Na igreja dos Capuchinhos, quem chega aqui é bem acolhido, quem chega aqui é bem orientado e quem chega aqui é atendido com muito amor e carinho”

Por Vinicius Miranda Cardoso*

Declarada Santuário Arquidiocesano pelo Cardeal-Arcebispo D. Orani e “templo de especial valor afetivo para a cidade” pelo prefeito – ambos em 2015, quando se celebravam os 450 anos do Rio de Janeiro – a Igreja de São Sebastião dos frades capuchinhos, situada à rua Haddock Lobo, é um templo de enorme riqueza histórica e devocional. Inaugurado em agosto de 1931, materializou a igreja que foi projetada e construída para perpetuar o legado da primeira matriz e catedral da cidade, que foi demolida junto com o Morro do Castelo, há cem anos. Para o novo templo foram levadas em procissão, no 20 de janeiro de 1922, as três ‘relíquias da cidade’: o marco de pedra original da cidade, com símbolos portugueses; os restos mortais do capitão-mor Estácio de Sá, ‘fundador’ da cidade e benfeitor da primeira matriz; e a imagem ‘histórica’ de São Sebastião – restaurada por Graça Costa e equipe, em 2015, tendo sido datada do século XVI, após testes laboratoriais, atribuindo-se a ela o estilo formal renascentista germânico. Por tudo isso, o templo foi elevado ao patamar de Basílica menor pela Santa Sé em 2016. É sobre este santuário, seu patrimônio histórico e a vivência da fé no padroeiro que iremos tratar nesta conversa com Frei Almir, frade capuchinho que está há dez anos coordenando os festejos de São Sebastião e da benção da primeira sexta-feira do ano – outra festividade tradicional, na basílica, igualmente com enorme procura dos fiéis. Frei Almir é categórico: com todo o respeito a Estácio, ao marco e ao Castelo, o que sobressai no santuário é a fé no santo padroeiro – “santo de tão grande amor de Estácio de Sá e de todo carioca”.

Frei Almir, a Basílica de São Sebastião é um lugar de memória da cidade do Rio de Janeiro: temos nela as relíquias históricas da cidade e um programa iconográfico que nos remetem à fundação do Rio. Na percepção do senhor, os fiéis e os visitantes da basílica interagem com essa “memória oficial”? Pode-se dizer que os leigos, em geral, se apercebem dessa narrativa histórica e dos seus significados em termos de patrimônio?

É uma pequena parcela da população que frequenta aqui que tem essa base, essa ideia do quão importante é a basílica para a história do Rio de Janeiro. A maioria do povo a procura pela sua devoção a São Sebastião. Ou também pela devoção da primeira sexta-feira do ano. Então, os que acorrem aqui – eu posso dizer que uns 80% – não têm essa ideia de que, aqui na basílica, temos os restos mortais de Estácio de Sá, o marco da cidade… É uma pequena parcela que conhece e entende essa história. Estamos sempre a fazer esse trabalho: ao povo que chega, que pergunta, nós apresentamos a basílica como ponto histórico da cidade, contando toda a sua narrativa, a parte iconográfica, a questão das relíquias, remetendo ao [Morro do] Castelo… É uma pequena parcela que tem essa memória, essa percepção da importância da Basílica de São Sebastião na história do Rio de Janeiro.

Carreata de São Sebastião, em 2021 / Divulgação

Para além de seu patrimônio, pode-se dizer que a Basílica é um santuário de devoção popular a São Sebastião, aqui no Rio. Como os aspectos populares dessa devoção se manifestam? Como são os “devotos de São Sebastião” que acorrem aos capuchinhos? Como expressam seus pedidos e agradecimentos ao santo?

O Santuário Basílica é um ponto de referência da devoção a São Sebastião – é uma das maiores festas do Rio de Janeiro. Tanto é que a procissão que se costumava fazer em tempos de não-pandemia (a procissão principal) sai daqui, do Santuário Basílica, com uma imagem que pertence aos capuchinhos: a réplica da imagem abençoada pelo papa Pio IX e enviada aos frades para poder sair nessa procissão. Pela procissão já se percebe o quão devoto é o carioca a São Sebastião. E é aqui, no Santuário Basílica, que eles se encontram, que eles manifestam essa sua devoção. O povo, que faz suas promessas, traz a criança vestida de São Sebastião, com as roupinhas de São Sebastião, e as depositam aos pés do santo… o tradicional beija-fita – que nos últimos dois anos não teve, por causa da pandemia, mas que também é um ponto muito forte, e a gente percebe nele o quão devoto é o carioca a São Sebastião, agradecendo, pedindo por uma graça, agradecendo pelo milagre de mais um ano aqui presente. Durante todo dia a gente percebe. Principalmente, nesses dez anos que estou à frente dos festejos de São Sebastião e da primeira sexta-feira, eu vejo quão bonita é a fé do carioca. É emocionante. É um exemplo para muitos: pois não importa a idade, não importa sua origem e não importa a cidade. Falo isso porque das cidades adjacentes também vêm [devotos] ao Santuário Basílica, no dia de São Sebastião, agradecer, vêm fazer os seus pedidos. É muito bonita a fé do carioca em São Sebastião. [Os devotos se] expressam de maneiras belíssimas, pois é típico do carioca esse calor, esse fervor e essa paixão que eles têm. Pois aqui eles cantam, aqui eles dançam, aqui eles trazem suas ofertas, aqui eles trazem seus pedidos, seus agradecimentos. Portanto, é lindíssimo o que acontece no dia de São Sebastião. E, além disso, durante todo o ano, o povo sempre recorre a essa igreja. Sempre tem aquele que diz “nessa igreja fui batizado, nessa igreja eu casei, nessa igreja eu trouxe meu filho pela primeira vez”. Ou seja, é uma ligação muito íntima do carioca com o Santuário Basílica dos Capuchinhos.

Entre as três relíquias – o marco de fundação da cidade, o ataúde de Estácio de Sá, com seu epitáfio, e a imagem histórica de São Sebastião – qual parece atrair maior atenção ou curiosidade das pessoas? Por quê?

Imagem histórica de São Sebastião após o restauro, em 2015 (Foto: Emilton Rocha)

Eu vejo que, entre essas três relíquias, a que chama mais atenção, a curiosidade deles, é conhecer a imagem, a primeira imagem trazida pelo Estácio de Sá. Como ela não fica exposta 24hs (nós temos todo um cuidado, todo um zelo por ela, então está guardada em um devido local), ela é sempre exposta durante a Trezena, durante algumas festas especiais da basílica, e a gente percebe que o povo olha essa imagem com grande amor, com grande devoção. Eu percebo que o que mais chama atenção é a imagem de São Sebastião, por causa dessa devoção tão grande por esse santo padroeiro.

A imagem de São Sebastião passou por um intenso processo de restauro, anos atrás. Os testes confirmaram que se trata de uma imagem do século da fundação da cidade. É plausível deduzir que foi esta a primeira imagem do santo por aqui, trazida por Estácio de Sá; mas não há documentos escritos quinhentistas que explicitem isso. Como o senhor vê essa questão? Ser ‘a primeira’ ou ‘aquela que veio com Estácio’ é de fato importante, na história e no valor devocional dessa imagem? Até que ponto?

O que nós temos sobre a imagem passa [através] de uma tradição oral e não de partes escritas, como você mesmo especifica na pergunta. Nós não temos um documento que aprove realmente que a imagem foi trazida por Estácio de Sá. Porém, os testes comprovam que realmente é uma imagem do século XVI. Logo, a partir dos testes, a partir da história, a partir da tradição oral, se afirma ser a imagem de Estácio de Sá. Quanto à importância – se é ou não é – a devoção a São Sebastião é algo que transcende a imagem. A imagem é apenas, para nós, o veículo ou meio de apontar um caminho a seguir, que é Jesus Cristo. A isso, São Sebastião se apresenta muito bem em qualquer imagem. Seja na imagem trazida pelo Estácio de Sá, seja na imagem que sai em procissão – como eu falei é uma imagem que foi enviada pelo papa, de que foi feita uma réplica para que saísse em procissão. O povo vai atrás da imagem, o povo vai atrás de São Sebastião. Então, não é a importância da imagem que vai afetar ou não a devoção a tão querido padroeiro da cidade. Mas nós não podemos nos apegar a isso. Devemos nos apegar, sim, à fé e acreditar no santo: através da sua história, através da sua vida, através do seu exemplo. E para o povo isso é muito claro. Tanto que aqui, no nosso Santuário, temos várias imagens de São Sebastião. No dia da festa – não importa qual imagem – eles vão até uma delas e fazem suas orações. Ou seja: isso transcende a imagem. A fé transcende o material.

Fachada da Basílica de São Sebastião, na Tijuca (Acervo Arquivo Geral da Cidade)

A demolição do morro do Castelo e da primeira catedral da Cidade completa 100 anos em 2022. O que os frades da Basílica têm pensado a respeito?

A princípio, referente aos cem anos da demolição do Castelo, nós não pensamos em nada ainda. Até porque tudo é muito incerto, tudo é muito inseguro neste tempo de pandemia. Porque, mesmo agora, preparando para os festejos da primeira sexta e de São Sebastião, já se cogita novamente – será que vamos manter fechado, será que não vamos… – mas, com certeza, vamos fazer alguma coisa: publicando algo, lançando nosso site, alguma coisa referente aos cem anos da demolição do Morro do Castelo. Porém não temos nenhuma ação preparada referente a isso.

Os capuchinhos são os ‘guardiães’ das relíquias da cidade e administram a igreja herdeira daquela que foi a primeira matriz da cidade, demolida com o Morro do Castelo, em 1922. Chegou a haver, na época, uma proposta de deixar as ‘relíquias’ no monumento civil a Estácio de Sá, à beira da Guanabara. No entendimento do senhor, por que os capuchinhos da Basílica devem ser os guardiães dessa memória e patrimônio? Que particularidade no modo de ser dos frades capuchinhos mais contribui para isso?

Primeiramente, foi-nos passado o guardianato pelo zelo que os frades tiveram ao chegar no Castelo e dar um lugar digno a essas relíquias. Os frades, quando chegaram, observaram, viram, e então cuidaram e zelaram das principais relíquias que encontraram ali. A princípio, o próprio imperador [D. Pedro II] dá essa guardiania perpétua aos frades, que depois é atestada e renovada com o Estado da Guanabara [1960-1975]. Por que achar que somos os principais guardiães dessa relíquia? Por que achamos que merecemos isso? Não é uma questão de merecimento pessoal; mas é aquilo que muitos, às vezes, não compreendem: que estando aqui, nós estamos preservando, nós temos um cuidado, nós temos um carinho… Nós apresentamos e zelamos por essas relíquias. A particularidade do modo de ser dos frades que contribui com isso é a de sermos frades, de sermos religiosos próximos ao povo. Na igreja dos Capuchinhos, quem chega aqui é bem acolhido, quem chega aqui é bem orientado e quem chega aqui é atendido com muito amor e carinho. Não é apenas a festa que nós propagamos, mas tudo aquilo que remete à sã tradição da Igreja; e depois de aproximarmos o povo de Deus – através do seu baluarte, através do seu querido santo de devoção, do seu padroeiro São Sebastião. Então, não é apenas um zelo material, mas principalmente um zelo espiritual, no qual estão envolvidas essas três relíquias. Tem a parte material, que é a parte física delas; tem a parte histórica; mas principalmente a parte espiritual, através da devoção a São Sebastião. Uma devoção que era querida pelo Estácio de Sá e que continua viva e muito presente na vida do carioca. Se teríamos algo para dizer de particular, é isso: essa proximidade com o povo de Deus. Essa proximidade com todos. Seja pobre, rico, branco, negro, homem, mulher: todos aqui são bem-queridos, todos aqui são bem-vindos. Então, nós temos essa particularidade, que faz com que essas relíquias também sejam [uma] forma de evangelização.

Início da carreata de São Sebastião, em 2021 (Foto: Emilton Rocha)

Estamos ainda numa pandemia, como não se via há pelo menos um século. Na época da Gripe Espanhola, a população também acorreu ao padroeiro, que é também o mais requisitado santo contra a peste. E agora, neste último biênio (2020-2021): o senhor diria que os fiéis e devotos que interagiram com a Basílica – de modo remoto, inclusive – multiplicaram suas preces, votos, ofertas e agradecimentos a São Sebastião? Houve um aumento do fervor que possa ser explicado pela especialidade do padroeiro?

Nesta época de pandemia nós percebemos, sim, um aumento da devoção a São Sebastião. Durante o período em que nós ficamos de portas fechadas – isso foi de março de 2020 a julho, mais ou menos, deste mesmo ano – o povo sempre nos acompanhou através das lives e a nossa principal preocupação foi manter acesa a chama da fé nos nossos queridos paroquianos, nos queridos devotos de São Sebastião. E conseguimos, sim, alcançar isso: através do site, através do Facebook, através do Instagram. Conseguimos captar e perceber o aumento na devoção a São Sebastião – suas preces, suas orações, das formas que enviavam. Claro que, há dois anos, a festa tem sido modificada. Ano passado, nós tivemos a festa a portas fechadas, né? Simplesmente com missas transmitidas e a benção na grade – pois percebemos que não podíamos tirar tudo do povo e que deveríamos, sim, manter essa devoção acesa. Por isso, como não podíamos ter a presença física dos fieis dentro da igreja, nas missas, nós fomos para fora da igreja, saímos do templo, fomos para os portões, ali, abençoar o povo, que durante todo o dia recorreu a São Sebastião: vinham, traziam suas ofertas e depositavam aos pés do santo, pois a imagem foi para frente da igreja para que ali pudesse ser venerada, com todo o devido respeito, com todo amor, com todo carinho, para que o povo pudesse, pelo menos, se aproximar um pouco mais do seu querido padroeiro. Esse ano, vamos ter as missas – assim espero – de hora em hora. Porém, com algumas modificações, referentes à questão sanitária, a questão da saúde, pois nos preocupamos muito com isso – tanto nosso reitor quanto nós, frades aqui do convento, estamos primeiramente preocupados com a saúde do povo, para que nada possa prejudicar isso e possa intervir na sua devoção. Então, procissão não haverá. Vai ter uma carreata novamente, mas vamos abençoar o povo lá fora, abençoando os carros que passarem na carreata… Ou seja, vamos tentar manter o povo próximo ao seu santo de devoção, ao seu querido São Sebastião. São Sebastião continua intercedendo, isso é sem dúvida para o povo. O povo sente, o povo percebe. E recorre a ele, pois sabe que nele pode se aproximar mais de Deus e alcançar a graça que tanto pede. Ou seja: a devoção a São Sebastião continua acesa – e até com mais fervor neste tempo de pandemia.

*Vinícius Miranda Cardoso é Doutor em História Social (PPGHISUFRJ), professor da SME-RJ, autor do livro “Cidade de São Sebastião”, vencedor do prêmio anual do Arquivo da Cidade em 2018.

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