Sebastião do Rio: o nome e o santo

Palacio Pedro Ernesto

“O Rio foi fundado com guerra; mas por que São Sebastião, e não outro santo guerreiro? Geralmente, atribuímos às flechas: que outro santo melhor para proteção contra as ‘nuvens de frechas’ dos índios tamoios?”

Palacio Pedro ErnestoEstamos começando março. O primeiro do mês comemora oficialmente o aniversário de fundação do Rio de Janeiro, a Cidade de São Sebastião: 456 anos. Não é feriado: o 1º de março como aniversário tem uma história tardia. Só entrou no calendário municipal no século XX. A história da fundação do Rio, porém, é bem conhecida.

A cidade sempre ouviu falar da relação entre seu nome, sua fundação e seu santo patronímico, que tinha o mesmo onomástico do rei de Portugal à época, Dom Sebastião (1554-1578). Se houve algum documento, alguma ata assinada pelas primeiras autoridades atestando a escolha de São Sebastião ou consagrando-lhe a cidade, durante a fundação, isso provavelmente se perdeu – talvez nos ataques franceses de 1710 e 1711 ou no incêndio que atingiu o Arquivo da Câmara, no Arco do Telles, em 1790. Senão, outros cronistas da história da cidade, mais antigos, já teriam citado esse possível documento antes.

É provável que não tenha existido esse documento, porém. A Congregação dos Ritos – uma espécie de conselho do Vaticano para a liturgia – ainda não tinha legislado sobre isso. O Papa Urbano VIII determinara, com o decreto “Pro Patronis in posterum elegendis” (1630), que a eleição de padroeiros, para ser válida, deveria ser registrada em algum tipo de memorando, comprovando o consenso entre o “clero e o povo” acerca da escolha de um santo. O “povo”, nesse caso, era representado por suas autoridades legítimas. Porém, isso só passou a valer a partir dos anos 1630. Não anulava escolhas anteriores, mas impunha um novo proceder dali para frente. A fundação do Rio aconteceu bem antes, em 1565. Temos que lembrar que, se os fundadores estavam numa situação precária, cercados pelos inimigos – tamoios e franceses –, seria um tanto complicado fazer o registro, que nem era obrigatório ainda.

O mais próximo que temos de um escrito nesse sentido é o auto de “posse solene das terras doadas por Estácio de Sá para o Rocio (e pastos) da Cidade”, de 24 de julho de 1565, que foi confirmado pelo governador-geral das partes do Brasil, Mem de Sá, em 16 de agosto de 1567. Esse documento faz votos de “que a dita cidade, com ajuda de nosso Senhor e do Mártir São Sebastião, vá em crescimento”. É um documento administrativo, um dos mais antigos da cidade; mas puramente civil, para outros fins. Não tem a chancela da Igreja.

Então, como foi validada a escolha do padroeiro? Aparentemente, pela inclusão de São Sebastião no nome da cidade. Ela é chamada de Cidade (e não vila) de São Sebastião do Rio de Janeiro – ou, até mais comum, ‘Cidade de São Sebastião’ – em todos os documentos daqueles primeiros anos, a partir de 1565. Adicionalmente,firmou-secom a construção,entre 1565 e 1566, de uma capela de pau-a-pique e palha com o título do santo. Para edificá-la e cuidar dela, formou-se uma confraria de São Sebastião com participação de oficiais da câmara e da capitania. Em 1567, a capela já devia estar mais ou menos pronta. Ficava para as bandas do Pão de Açúcar, na chamada “cidade velha”, que depois foi abandonada.

Foi nesse momento que o segundo bispo do Brasil, Dom Pedro Leitão, veio da Bahia com o governador Mem de Sá para comandarem a conquista definitiva da Guanabara, que teve como auge a batalha contra tamoios e franceses em Uruçu-Mirim, hoje no bairro da Glória. O momento decisivo parece ter se dado em 20 de janeiro de 1567, quando Estácio de Sá foi varado por uma flecha perto dos olhos, vindo a morrer um tempo depois. Depois disso, ainda com Mem de Sá no Rio, começou-se a construção da igreja de São Sebastião do Morro do Castelo, que veio a ser a primeira matriz e, depois, Sé. É possível que, na dedicação desse templo, anterior a 1575, tenha havido algum rito de consagração da cidade ao patrocínio de São Sebastião. Quando os jesuítas trazem uma relíquia do santo para a cidade, uma década à frente, as festividades já dão por certa a relação entre o padroeiro e o Rio, acabando por consagrá-la.

Então, como foi validada a escolha do padroeiro? Aparentemente, pela inclusão de São Sebastião no nome da cidade.”

Portanto, a escolha do santo foi validada a posteriori, sem meios formais. Porém, quando e em que ocasião a escolha em si foi definida? Os cronistas mais antigos explicam-na em razão da saída de Estácio de Sá com seus homens, incluindo índios flecheiros, de São Vicente, no litoral de São Paulo, para o Rio de Janeiro: teria se dado no dia 20 de janeiro de 1565. Ora, no início dos anos 1500, a expansão portuguesa foi intitulando com o nome de São Sebastião diversos lugares, quase sempre devido a acontecimentos que ocorreram num 20 de janeiro. Em 1509, descobriram nesse dia uma baía no Ceilão, nos mares do Índico, chamando-a de baía de São Sebastião. Em 20 de janeiro de 1522 fundaram a fortaleza de São Sebastião de Baçaim, na Índia. Faz todo o sentido. A carta de São José de Anchieta ao padre Diogo Mirón de 1565 (que versa sobre a fundação do Rio), por sua vez, diz que a partida para o Rio se deu no dia 22.  O dia exato não faz diferença. Na verdade, a escolha do patrono do Rio pode ter ocorrido até mesmo antes disso. Houve uma primeira tentativa de desembarque do pessoal que vinha com Estácio de São Vicente em 1563. Já então podia estar definido; quem sabe a decisão tenha vindo até de Portugal, do próprio rei.É preciso mais pesquisas.

Difícil determinar com exatidão a quem coube a escolha de São Sebastião, pela perda ou raridade de documentos da época. Sendo assim, seria prudente considerar como uma escolha conjunta feita pelo rei Dom Sebastião (que, em alguns registros aparece como ‘aquele’ que mandou fundar a cidade, e era o fundador, em última instância, por ser o rei, senhor das conquistas portuguesas); por Estácio de Sá; e pelos jesuítas, especialmente na figura de São José de Anchieta, que justificou a escolha de São Sebastião naquela sua carta e esteve com outro jesuíta, Gonçalo de Oliveira, nos primeiros meses da ‘cidade velha’, ainda durante os conflitos com tamoios e franceses. Tudo confirmado, mesmo que tacitamente, pelo bispo da Bahia, único do Brasil naquela época, Dom Pedro Leitão (que esteve no Rio); e pelo governador-geral Mem de Sá, quando assumiu o controle, em 1567.

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Imagem histórica do padroeiro, venerada no Santuário Basílica de São Sebastião, na Tijuca. / Divulgação Pascom

Cabem aqui algumas palavras sobre os porquês de São Sebastião. Primeiro, quanto ao rei. Dom Sebastião nasceu num 20 de janeiro, dia do santo. Por isso, recebeu tal nome. Em 20 de janeiro de 1565, quando Estácio se preparava para sair de São Vicente para o Rio, era aniversário, portanto, do rei, que estava completando 11 anos. Ainda não reinava. Subiu de fato ao trono em 1568. Dez anos depois, sumiu no Marrocos, batalhando contra islâmicos.

Dom Sebastião, ao que parece, sempre levou a sério a veneração especial pelo santo homônimo. Era mais do que comum, no catolicismo de então, honrar o santo do nome. O monarca designou as flechas do martírio sebastianino como símbolo régio em várias ocasiões. Logo no início do reinado, o jovem soberano tentou erguer uma grandiosa igreja a São Sebastião no coração de Lisboa, como agradecimento pelo fim da chamada “peste grande”, de 1568/69 – muito embora tenha ficado inconclusa. Muitos cronistas, poetas e pintores daquela época faziam uma correlação alegórica entre o São Sebastião e o rei – quase um alter-ego de seu santo. Dom Sebastião criou ainda a ordem militar “da Flecha” (uma espécie de ramo ou elite da Ordem de Cristo, masquenão durou muito). Obteve também, de Roma, uma relíquia: uma das flechas que martirizaram São Sebastião, assim acreditada. Portanto, é uma falsa dicotomia quando se diz que o Rio foi Cidade de São Sebastião por causa do rei, nem tanto do santo – como, por vezes, se escreve ou insinua. Em Portugal, esse rei venerava e promovia este santo. Honrar este santo era honrar o rei. E vice-versa. Quase todos os cronistas que explicaram o nome da cidade no período colonial o explicaram duplamente, mencionando ambos, variando apenas a ordem. Não foi assim só no Rio. No mesmo dia em que Estácio foi flechado, os portugueses estavam fundando a Fortaleza de São Sebastião de Mengalor, no Oriente. A explicação do nome era a mesma: “em obséquio do Rei(…) e do santo”, que era festejado no dia.

É importante notar o que diz São José de Anchieta na mesma carta de 1565, quando diz que bastava a cidade ser chamada de São Sebastião para ser “favorecida do Senhor e acrescentada por Sua Alteza” (os reis de Portugal ainda não tinham título de Majestade). O trecho mostra a expectativa de proteção celeste, por intermédio de um santo guerreiro; mas também a de que o rei tomasse predileção pela cidade de seu nome e provesse os conquistadores e os padres jesuítas com favores e privilégios, as chamadas “mercês”, tão comuns no funcionamento político da época – no caso, a dotação do colégio com rendas régias, confirmação de sesmarias, isenção de algumas taxas, custeio das necessidades do culto divino, concessão de patentes e títulos de nobilitação para os fundadores leigos etc. O nome da cidade e a consagração do santo titular como padroeiro buscavam a proteção dos altos poderes do Céu e da Terra, como benfeitores.

Quando se explica a escolha de São Sebastião, deve-se levar em conta, sim, que era um santo militar conforme suas hagiografias: havia pertencido à coorte pretoriana, a alta guarda dos imperadores de Roma na época da diarquia, em que imperavam Diocleciano e seu coimperador, Maximiano (c.286 a 305). Havia, no entanto, outros santos guerreiros. No Ocidente, os mais invocados para proteção contra os inimigos da fé eram São Jorge, o Apóstolo São Tiago Maior (o de Compostela) e São Maurício, que foi padroeiro da Vila Velha do Espírito Santo. O cardeal Cesare Baronio, que revisou o martirológio romano (c.1589) depois do Concílio de Trento (1545-1563), aprovava essas invocações. Sem contar São Miguel Arcanjo, ‘príncipe das milícias celestes’. Um relatório jesuítico escrito por volta de 1620 diz que, na guerra da fundação do Rio, os soldados invocavam não só São Sebastião: também São Miguel e a Virgem Maria.

Ora, o Rio foi fundado com guerra; mas por que São Sebastião, e não outro santo guerreiro? Geralmente, atribuímos às flechas: que outro santo melhor para proteção contra as ‘nuvens de frechas’ dos índios tamoios? Em Maracaibo, na Venezuela, foi assim: para proteção contra as flechas envenenadas dos índios, os espanhóis invocaram o mártir flechado, criando uma confraria dedicada a ele, por volta de 1590. Porém, São Sebastião não era o único que tinha flechas em sua iconografia. Uma santa muito popular à época, inclusive entre os jesuítas no Brasil, era Santa Úrsula. Ela é representada segurando em uma das mãos as flechas de seu martírio – teria sido morta a flechadas pelo Hunos (a propósito, São Sebastião não morreu com as flechadas, como sabemos de suas hagiografias). Uma santa cuja festa foi instituída pelo bispado da Bahia para toda a América lusa, no Quinhentos. Ela chegou a ser intitulada, com suas companheiras do martírio, ‘padroeira do Brasil’, em 1575. Não seria nenhum absurdo se os homens de Estácio de Sá recorressem a Santa Úrsula e Companheiras para enfrentar tamoios e franceses,mesmo considerando que só uma década depois da fundação do Rio é que os jesuítas trouxeram relíquias dessas santas para o litoral brasílico.

Logo no início do reinado, o jovem soberano tentou erguer uma grandiosa igreja a São Sebastião no coração de Lisboa, como agradecimento pelo fim da chamada “peste grande”

No Ocidente, o que singularizava São Sebastião era seu carisma anti-peste. Bastante oportuno, tendo em vista que jesuítas como Nóbrega e Anchieta reiteravam em suas cartas a mortandade de índios pela “varíola”. A escolha de São Sebastião deve ter levado isso em consideração, ainda que implicitamente. Também a presença francesa, calvinista, era comparada a uma pestilência, em cartas. Chega a ser citada como “peçonha protestante”. Portanto, é claro que, de alguma forma, deve ter contribuído para a escolha do padroeiro o seu patrocínio contra a peste. Este era o principal fator de invocação de São Sebastião desde, pelo menos, a pandemia da Peste Negra, nos anos 1300, ou até antes.Fosse contra a varíola, que matava catecúmenos indígenas em São Vicente; fosse (simbolicamente) contra a assim chamada heresia protestante, comparada a uma espécie de mal contagioso, à época, São Sebastião seria providencial. Mas havia São Roque: já então conclamado contra epidemias, no Ocidente. Ele era, inclusive, o santo titular da primeira e principal igreja jesuítica em Lisboa.

Portanto, para entender os porquês da escolha de São Sebastião – e não de algum outro santo ‘concorrente’ – podemos levar em conta um pouco de todo o exposto. O que parece mais decisivo é que a fundação do Rio tenha ocorrido numa conjuntura específica: fazia-se uma empreitada em nome de um rei ascendente que promovia (e tinha o nome de) um santo protetor na guerra e advogado contra a peste. Combinação ideal. Esse patrono, cristão, guerreiro, munido de flechas, também podia ser um excelente modelo de conduta na catequese dos povos originários, ditos ‘índios’, que poderiam se espelhar nele e mesmo invocá-lo. É o que pode ter acontecido com o chefe Arariboia, e talvez alguns de seus índios aldeados – temiminós e tupiniquins, aliados dos portugueses –, caso as primeiras memórias dos jesuítas na cidade sejam consideradas suficientemente verossímeis. Pero Rodrigues, um dos cronistas, diz que o Arariboia, batizado como Martim Afonso, chamava São Sebastião de “irmão capitão”, invocando o santo antes de atacar os inimigos.

Quanto aos milagres e aparição de São Sebastião, atestados pelos primeiros povoadores, haveríamos de tratar noutro texto. Eles reforçaram ainda mais a escolha do padroeiro e sua devoção na cidade. Ora, o soldado ‘gentil-homem, saltando de canoa em canoa’, a defender os homens de Estácio de cilada tramada por tamoios e franceses, só poderia aparecer e ser identificado como sendo o santo protetor (pelo padre Anchieta) caso o Rio nascente tivesse já firme fé em Deus e em Seu excelso preposto: o mártir São Sebastião. Quase sempre, a escolha de fé e a oração precedem o milagre, não o inverso. Por isso, em algum momento – antes dos Idos de Março de 1565, por certo – Sebastião mártir, o santo d’El Rey, testemunha de Cristo, foi designado para a missão de proteger a fundação do Rio. Poder-se-á mesmo concordar com o governador Luiz Vahia Monteiro, ‘o Onça’: em 1728, considerava São Sebastião não só, da cidade, o ‘padroeyro’, mas também seu verdadeiro ‘fundador’.

*Esse texto é uma transcrição adaptada, revista e acrescentada de uma parte da live apresentada em janeiro, ‘São Sebastião e Sant’Ana: como e por que se tornaram padroeiros da Arquidiocese’, que fez parte das comemorações oficiais da Trezena de São Sebastião 2021

* Sobre o 1º de março não ser feriado, tratei em artigo anterior neste jornal (“O 20 de janeiro e a República”, Testemunho de Fé, n.1197, p.9).

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Vinicius Miranda Cardoso – Doutor em história social (PPGHISUFRJ), professor da SME-RJ, autor do livro “Cidade de São Sebastião” e vencedor do prêmio anual do Arquivo da Cidade (2018) viniciusmirandacardoso@hotmail.com, Instagram: @viniciusmirandacardoso

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