A bem-aventurança proclamada por Jesus para os puros de coração está situada no coração do evangelho
Dom Emanuele Bargellini / Aleteia
Antecipados pelo olhar compassivo de Deus sobre nós, somo atraídos a olhar para Ele, e neste olhar aprendemos a olhar com os olhos de Deus para nós mesmos e para todas as coisas. A bem-aventurança proclamada por Jesus para os puros de coração está situada no coração do evangelho, acompanhada com a promessa que a eles será dada por graça a bênção mais preciosa para os homens retos: Ver a Deus.
Felizes os puros de coração: a expressão puros de coração tem na escritura ao menos três significados interconexos, e que os aproximam aos pobres no espirito, aos quais pertence, por graça, o reino de Deus. São ditos puros de coração:
– Os que atuam com consciência reta e humilde na relação com Deus e com o próximo.
– Os que tem o coração unificado e centrado no Senhor, superando toda divisão e dispersão, provocadas pelas várias formas de idolatria, como o poder, o dinheiro, o orgulho, etc.
– Os que tem um coração simples como crianças. Eles, por esta atitude interior de abertura e confiança, têm acesso ao reino de Deus e se tornam modelo de relação certa com a vida. Em verdade vos digo que se não vos converterdes e não vos tornardes como as crianças, de modo algum entrareis no reino dos céus (Mt 18,1.3-4).
A estes pequenos e simples, desprezados pelos homens e marginalizados, é reservada a plenitude das bênçãos divinas, que fundamenta a verdadeira felicidade da vida, mesmo enfrentando as provas mais duras. Como os mártires de Deus de todos os tempos.
Ver a Deus: como em outras passagens dos evangelhos, e sobretudo em João, o verbo “Ver” relacionado a Deus, significa mais “reconhecer na luz da fé a obra de Deus e crer nele”, e não simplesmente “enxergar” as coisas na sua estrutura visível. Sobretudo indica “entrar em relação” com alguém e desejar alcançar tal objetivo.
Quando os dois discípulos de João viram o mestre fixar o olhar em Jesus que caminhava, e apontar para ele dizendo: ‘Eis o cordeiro de Deus’, eles seguiram Jesus, que os vendo, disse-lhes: ‘Que procurais?’ Disseram-lhe: ‘Rabi, onde moras?’- Disse-lhes: ‘Vinde e vede’- Então eles foram e viram onde morava, e permaneceram com ele aquele dia (Jo 1,36-39). Esse encontro mudou radicalmente a vida dos dois. Se tornaram imediatamente testemunhas do que tinham visto em Jesus. (Jo 1, 40-51). A palavra-chave será a mesma: Encontramoso Messias…Vem e vê (Jo 1,41;46).
No final, os bem-aventurados discípulos descobrirão que o olhar deles para Jesus, tinha sido precedido pelo olhar benevolente de Jesus para eles, como Jesus declara a Natanael: Jesus viu Natanael vindo até ele e disse a seu respeito: ‘Eis verdadeiramente um israelita em que não há fraude’. ‘De onde me conheces?’. ‘Antes que Filipe te chamasse, eu te vi quando estavas sob a figueira’… (Jo. 1,47-51)
Desejo de ver a Deus e as provações
O bem-aventurado que vê a Deus experimenta uma felicidade que foi anunciada por Jesus como bênção messiânica, prometida aos puros de coração, e que nos abre a novos e mais amplos horizontes. Tal desejo brota da centelha divina que habita no coração do homem, criado à imagem e semelhança de Deus. É um anseio constitutivo, como atesta o autor inspirado do salmo: Assim como a corça suspira pelas águas correntes, suspira igualmente minha alma por vós, ó meu Deus… Minha alma tem sede de Deus e deseja o Deus vivo. Quando terei a alegria de ver a face de Deus? (Sl 41,2-3).
É a pergunta cheia de angustia de quem se encontra exilado e distante de sua pátria e da cidade onde Deus habita, Jerusalém. Esta angústia expressa e interpreta aspirações e angústias da pessoa humana em qualquer tempo, que se sente atraída por Deus e, ao mesmo tempo, desamparada, exilada de si mesma, sem rumo na vida. O caminho deste peregrino, buscando ver a face do Senhor, continua a entrelaçar constantemente desejo, procura, contato inicial, experiência de silêncio e ausência do amado, encontro inesperado e apaixonado, novas provações, novo encontro… Numa espiral sem fim. Um filosofo e pensador moderno (B.Pascal [+1682], Pensées, 929), seguindo o pensamento de Santo Agostinho,dirá que quem anseia pela verdade e a Deus, é porque de alguma forma já o experimentou: Tu não me procurarias, se não me tivesse já encontrado.
São Pedro Crisólogo, grande bispo de Ravena no sec. IV, comenta assim o dinamismo surpreendente da busca de Deus pelos recém nascidos no batismo: Deus que o mundo não pode conter, como o olhar limitado do homem o abrangeria? Mas o que deve ser, o que é possível, não é a regra do amor. O amor ignora as leis, não tem regra, desconhece medida. O amor não desiste perante o impossível, não desanima diante das dificuldades… O amor não pode deixar de ver o que ama (Sermão 147).
É a passagem definitiva do olhar para Deus como fiscal severo, para o olhar para Deus como Pai cuidadoso: passagem de uma visão moralista da vida, ao olhar compassivo do Pai de Jesus, que atrai a si, e atraindo, transforma a visão e alimenta a vida.
A experiência de um desejo profundo e, ao mesmo tempo, de um sentir-se precário, marca o caminho dos que iniciam a peregrinação da fé, bem como dos que são já experientes do caminho. No primeiro encontro com Cristo no Batismo, o candidato recebe a “vela acesa” do círio pascal, acompanhada com as palavras: Foste iluminado por Cristo para te tornares luz do mundo. Com a ajuda dos teus pais e padrinhos caminha como filho/a da luz. [cf Paulo: todos vós sois filhos da luz (1Ts 5,5), ePedro: Mas vós sois a geração eleita… para que anuncieis as grandezas daquele que vos chamou das trevas para a sua luz maravilhosa (1Pd 2,9)].Na liturgia oriental o Batismo é chamado de iluminação (phótismos) e os batizados de iluminados.
É significativo o testemunho que alguns santos deixaram de si sobre esta experiência fascinante e dilacerante de ser alcançados pela luz que emana do olhar do Senhor sobre si, e o alternar-se de provas e obscuridade dentro de si e ao redor de si. São Romualdo, fundador dos monges camaldolenses dirá em uma ocasião: ‘Caro Jesus, querido Jesus, por que me abandonaste? Por que me deixaste à mercê do meu inimigo?’ (São PedroDamião, A Vida de São Romualdo, 16). O soldado de Cristo, robustecido ainda mais pela luta constante…… não devia temer mais luta alguma do enervado inimigo (Ibidem, 17). E, o mesmo Romualdo, em outra ocasião de intima relação com o Senhor dirá: ‘Amado, amado Jesus, meu doce mel, meu desejo inefável, doçura dos santos, suavidade dos anjos!’ (Ibidem, 31) Este alternar-se de luz/consolação e trevas/provações, pertence à estrutura do caminho de fé.
O próprio Jesus, o experimentou ao longo da vida nas suas noites passadas em oração diante do Pai, bem como na luta definitiva no horto das oliveiras e na cruz: ‘Pai, se queres, afasta de mim este cálice. Contudo não a minha vontade, mas a tua seja feita! E apareceu um anjo do céu que o confortava… (Lc 22,42). Jesus deu um forte grito: ‘Pai, em tuas mãos, eu entrego o meu espírito’ (Lc 23,46).
Em Cristo morto e ressuscitado tem início a nova criação e a nova humanidade
Hoje vivemos o paradoxo de muitas pessoas viverem aparentemente satisfeitas sem nenhuma referência a Deus: ateus programáticos ou indiferentes. Como confrontar-nos com este ateísmo existencial que em certa medida habita também o coração de todo crente? Jesus nos alerta sobre este risco e nos ensina a rezar ao Pai para não sucumbir na tentação. Pai nosso… e não nos deixai cair em tentação, mas livrai-nos do mal. Papa Francisco sugeriu aos bispos italianos para modificar a tradução da forma latina Et ne nos inducas in tentationem, com: E não nos deixeis cair em tentação…, como temos em português.
É iluminadora a resposta que o Papa Francisco deu a um jovem em um encontro de Cracóvia que lhe disse: ‘Eu sou crente e praticante na vida da paroquia. Tenho um amigo que se diz ateu. O que posso dizer a ele para que se converta à fé?’. Papa Francisco respondeu: ‘Você não deve dizer nada. Viva a sua fé. Talvez chegue o tempo em que seu amigo se pergunte porque você vive dessa maneira e inicie seu próprio caminho de fé’. A igreja cresce por irradiação…
Sob o olhar contemplativo de Deus
O desejo de ver a face do Senhor, como centro animador da vida e o empenho para alcançar com sua graça tal objetivo, se revestem de precariedade. Precisamos, antes de tudo, nos deixar olhar com carinho e compaixão por parte do próprio Senhor. Senhor, vós me sondais e conheceis, sabeis quando me sento e quando me levanto... (Sl 138,1-3). Seu olhar, acolhido sem reserva, realiza o encontro tão desejado, que nos transforma segundo a sua luz. A graça nos precede semeando em nosso coração a inquietação e o desejo de plenitude e de beleza (cf. Jo 10,10).
A relação de Deus com a realidade, que exprimimos com o símbolo do seu “olhar”, é criação de vida e de harmonia, nas quais a sua própria vida divina se reflete e se comunica. A Escritura põe a criação e a história entre dois olhares contemplativos, que as abraçam como que dentro de uma grande inclusão, revelando assim, o sentido profundo, seja da criação como da história.
O primeiro olhar de Deus em Gn 1,31
O autor sagrado afirma que, tendo concluído a obra da criação, Deus viu tudo o que tinha feito: era muito bom/belo. A coroa desta obra foi a criação do homem e da mulher. O olhar de Deus não se limita a contemplar com alegria a beleza e a bondade existente nas suas criaturas. Seu olhar comunica sua própria bondade e beleza. Assim, a criação é chamada a irradiar a beleza e a bondade divina, e o homem é colocado no jardim do mundo para promover em si mesmo e na criação a bondade e beleza. A presença da beleza de Deus na criação e sua força irradiante, em chave cristã, denomina-se a “sacramentalidade” da pessoa e da natureza, que por vocação própria são chamadas a favorecer o encontro com o Senhor que neles se exprime (cf. o teólogo ortodoxo I. Zizioulas, Il creato come eucaristia. Approccio teológico al problema della ecologia; Ed. Qiqajon Bose1994).
Nesse sentido, é significativo o que o Papa Francisco afirma sobre a ecologia integral na Carta Encíclica Laudato si, citando o Patriarca Bartolomeu (9): Além disso nós, cristãos, somos chamados a «aceitar o mundo como sacramento de comunhão, como forma de partilhar com Deus e com o próximo numa escala global. É nossa humilde convicção que o divino e o humano se encontram no menor detalhe da túnica inconsútil da criação de Deus, mesmo no último grão de poeira do nosso planeta».
O olhar contemplativo do apostolo no livro do Apocalipse
O olhar profético do apostolo contempla, vê,na luz de Cristo ressuscitado (cf Ap 1,10) a criação e a história chegarem à sua meta final, que corresponde ao projeto original de Deus (Gn 1-3). Vi então um céu novo e uma terra nova. Pois o primeiro céu e a primeira terra se foram e o mar não existe mais. Vi também descer do céu, de junto de Deus, uma Jerusalém nova, pronta como uma esposa que se enfeitou para seu esposo (Ap 21,1-2).
Nossa primeira atitude é redescobrir e cultivar a consciência de estar sob seu cuidado paterno, sob seu olhar benevolente, que nos ensina a olhar a nós mesmos, aos outros, e à realidade inteira (pessoas e eventos) com seu mesmo olhar, cuidadoso, compassivo e solidário. Quando nosso olhar é orientado pela experiência desse olhar benevolente do Senhor, alcançamos o verdadeiro conhecimento das pessoas e das situações, com aquela luz que só o amor possui, como Maria e Josédiante do mistério do menino Jesus. Não compreendiam, mas guardavam tudo isso no seu coração (cf. Lc, 2, 50-51).
Do olhar do Pai ao olhar de Jesus
O Deus da aliança, o Deus da libertação, decide intervir em favor do seu povo porque viu a sua desolação. Jahweh disse: Eu vi e ouvi a miséria do meu povo que está no Egito. Ouvi seu grito… Por isso desci a fim de libertá-lo das mãos dos egípcios (Ex 3,7-8).
Moisés, o amigo de Deus e seu colaborador nesta aventura humana e divina, no momento mais agudo de crise, no desenrolar da sua missão, pede a Deus para “mostrar-lhe seu rosto”, para ter garantia da sua ação divina. O Senhor lhe concede uma grande intimidade, mas não a visão direta da sua face. Seria um passo arriscado, pois poderia morrer. O Senhor, então, falava com Moisés face a face como um homem fala com seu amigo (Ex 33,11) e, todavia, não lhe concede ver diretamente a sua face… Este episódio, semelhante àquele vivido pelo profeta Elias na montanha santa, constituem dois pontos altos da mística cristã. Mesmo assim, a mística cristã não se detém no mistério da inacessibilidade absoluta de Deus, pois ela se fundamenta, ao final, no mistério do Verbo encarnado em Jesus de Nazaré. Ninguém jamais viu a Deus: o Filho unigênito, que está no seio do Pai (voltado para o Pai, segundo o original grego: Eis kalpós thou Patér), este o deu a conhecer (Jo 1,18).
Jesus é o rosto da misericórdia do Pai diz Papa Francisco na Carta do Jubileu de 2015. Com seus gestos de solidariedade radical para com os pecadores e os pobres, Jesus antecipa os pedidos de cura e perdão dos pecados, dos que não tem voz para pedir ou não merecem perdão, pois ainda se encontram em situação de pecado segundo os homens, segundo a lei.
Jesus chama os primeiros discípulos olhando para eles enquanto estão empenhados no próprio trabalho cotidiano. O verbo central das narrações do encontro é que Jesus viu estes homens, os chama e eles o seguem. Ele escolhe como discípulos, pessoas dentre as mais improváveis do ponto de vista da logica humana, como a escolha privilegiada de Saulo e a transformação dele no apóstolo mais criativo no anuncio da boa nova. Deus chama todos a fazerem parte do seu reino, sem distinção de pessoa, como comprova a vocação e missão de Paulo entre os pagãos! Jesus cura os doentes vendo a fé que se encontra no coração deles e que ninguém conhece: os leprosos, a mulher encurvada, os judeus na sinagoga, o homem com a mão paralisada, a mulher hemorroíssa que toca em sua veste, a mulher pecadora, o oficial romano que pede ajuda para seu criado…, etc.
Há dois eventos particularmente significativos no sentido que estamos destacando: o primeiro é o “sinal” que Jesus realiza nas as bodas de Caná, (Jo 2, 1-12). Diz o texto que os discípulos ao verem o que aconteceu com a água transformada em vinho, “acreditaram”. O segundo é a cura do cego de nascença. É Jesus quem primeiro viu um homem cego de nascença. Enquanto os discípulos se preocupam em questionar quem é o pecador responsável pela sua cegueira, ele mesmo ou seus pais, Jesus toma a iniciativa e age imediatamente para curá-lo. O cego não fala. Obedece. Jesus comanda-o de ir à piscina para se lavar e ele volta com a vista sadia. Somente ao final do longo processo ao qual os fariseus submetem o cego curado, Jesus, encontrando-o, solicita a sua fé: Crês no Filho do Homem? Respondeu ele: Quem é, Senhor, para que eu creia? Jesus então lhe diz: ‘Tu o vês, é quem fala contigo’. Exclamou ele: ‘Creio, Senhor!’ E prostrou-se diante dele (cf. Jo 9,33-38).
A cura praticada por Jesus é rica de significado para o caminho da fé. Por isso, a pedagogia da igreja coloca a cura do cego de nascença no centro do caminho quaresmal (IV domingo –A). São histórias cotidianas as visitas de surpresa que Jesus realiza na vida de cada um. A vida, em sua normalidade, é o lugar privilegiado para escutar a voz de Jesus que vem bater à porta do nosso coração, para fazer festa conosco (cf Ap 2,20).
Por isso, é preciso lembrar-se sempre do convite insistente de Jesus: Vigiai… Estejais prontos…pois não sabeis quando o filho do homem verá (Mt 25, 13). Estar prontos e disponíveis também às surpresas de Deus, tendo guardado em nossa lâmpada o óleo da fé e da esperança, é condição para entrar e ser acolhidos na sala de festa das bodas do rei. A espera da vinda gloriosa do Senhor se alimenta a cada dia da memória da sua vinda na humildade da condição humana, através das experiências das suas visitas discretas e silenciosas no hoje de Deus.
Às vezes, nos identificados tanto com nossos critérios de avaliação das situações que não conseguimos vislumbrar o sentido mais profundo que elas guardam em si. Somente aproximando-nos a elas com olhar purificado, é possível perceber a positividade providencial que carregam consigo. Isso é particularmente relevante na vida monástica, na qual é importante e desafiador olhar as novidades de Deus, no cotidiano simples que se repete. Em um encontro com as monjas camaldolenses de Roma, Papa Francisco fez esta pergunta desafiadora: Nos mosteiros, se espera de verdade o amanhã de Deus? Quem se deixou olhar de verdade por Deus tem aquele coração puro ao qual é concedida a graça de ver a Deus, a si mesmo e a todas as situações na luz de Deus, e reconhecer e acolher seu amanhã que sempre nos surpreende!