A Igreja e a Inteligência Artificial

O Compêndio sintetiza o ensino social da Igreja em cinco princípios e, a partir deles, é possível determinar critérios para nortear a utilização da Inteligência Artificial

Por O São Paulo*

Por ser uma realidade que permeia e afeta a vida de toda a humanidade, a evo­lução tecnológica tem sido objeto de pon­derações por parte da Igreja ao longo dos séculos.

Posturas diversas marcaram a posição eclesial em relação à questão, variando desde o distanciamento – período compreendido entre a época em que a ciência começou a se desenvolver, no século XV, e o surgimento da imprensa, no século XIX –, até a avaliação crítica e equilibrada dos meios eletrônicos digitais, nos séculos XX e XXI. Hoje, a Igreja considera que o desenvolvimento tecnológico é muito relevante e precisa ser acolhido. Ainda assim, ela estimula o debate sobre o tema e permanece atenta às possíveis consequências adversas à humanidade.

No contexto atual, a Igreja reconhe­ce as potencialidades que a Inteligência Artificial (IA) pode oferecer à socieda­de, olhando, contudo, com cautela para estabelecer parâmetros adequados à sua utilização. Para entender como isso acontece, alguns documentos eclesiais se tornam uma fonte referencial.

1. COMPÊNDIO DA DOUTRINA SOCIAL DA IGREJA (CDSI)

Este compêndio faz uma síntese do que a Igreja pensa do ponto de vista técnico e tecnológico, também levan­do em consideração os documentos do Concílio Vaticano II.

– Reconhece que os resultados da ciência e da técnica são em si mesmos positivos, pois configuram-se como sinais e consequências da própria grandeza divina, tendo o homem como continuador da própria criação (CDSI 456).

– Afirma que toda e qualquer atividade humana, no entanto, deve corresponder, segundo o desígnio de Deus, ao bem da humanidade. Nessa perspectiva, o Magistério tem sublinhado que a Igreja Católica não se opõe de modo algum ao progresso, mas antes considera “a ciência e a tecnologia… um produto maravilhoso da criatividade humana, que é dom de Deus” (CDSI 457).

– Destaca a ideia da “reta aplicação”, uma vez que reconhece que a técnica não é nem boa nem necessariamente má, mas também não é neutra e, portanto, precisa ser retamente aplicada pelo ser humano. Nesse sentido, o Compêndio frisa que “é preciso manter uma atitude de prudência e examinar com olhos atentos todo esse desenvolvimento tecnológico” (CDSI 458).

– Ressalta que “o ponto de referência central para toda aplicação científica e técnica é o respeito ao ser humano”, e que tal respeito “também deve se estender às demais criaturas viventes”, pelo fato de que “o ser humano não deve dispor arbitrariamente da Terra, porque quando ele se comporta assim, acaba se substituindo a Deus e, desse modo, acaba por provocar a revolta da natureza” (CDSI 459 e 460).

IA à luz da Doutrina Social da Igreja

O Compêndio sintetiza o ensino social da Igreja em cinco princípios e, a partir deles, é possível determinar critérios para nortear a utilização da Inteligência Artificial:

  • Dignidade da pessoa humana: deve-se garantir, de forma efetiva, a privacidade e a segurança dos dados de cada pessoa.
  • Bem comum: o combate ao atual “capitalismo de vigilância”, que explora com afinco a própria natureza humana para transformá-la em previsões do comportamento para fins comerciais. Trata-se, portanto, de um direito fundamental voltado à imposição de limites à maneira como informações são processadas e negociadas, e ao esforço por dar mais poder às pessoas no controle do fluxo de informações gerado por elas próprias, mas manejados por grandes corporações.
  • Destino universal dos bens: os bens da Criação devem ser acessíveis a todos. Em um mercado marcado por grandes corporações que detêm o controle de praticamente todo o cenário digital global, como fazer com que o destino universal dos bens seja efetivo e esteja ao alcance de cada pessoa?
  • Subsidiariedade:  expressa a ideia segundo a qual o Estado não deve assumir aquilo que outras instituições sociais mais próximas ao cidadão, como sindicatos, associações, famílias, entre outras, têm condições de fazer. Assim, como falar de subsidiariedade quando se vive um período de “colonialismo de dados”, minerados em plataformas digitais com pouquíssimos controles externos, nem mesmo do Estado?
  • Solidariedade: a exclusão digitalse configura pelo fato de o acesso a tais tecnologias ser restrito a uma pequena parcela da população mundial, seja por falta de acesso material, logístico ou financeiro, seja por falta de letramento digital.

2CARITAS IN VERITATE

Documento fundamental em todo o processo de digitalização, a carta encíclica Caritas in veritate (CV), do Papa Bento XVI, destaca os seguintes ensinamentos relacionados ao desenvolvimento tecnológico:

– Reconhece a técnica como um dado profundamente humano, ligado à autonomia e à liberdade (CV 69).

– Afirma que, na técnica, o ser humano reconhece a si mesmo e realiza a própria humanidade. Isso faz com que a própria noção de humanidade seja atualizada e passe por um processo de evolução ao longo do tempo (CV 69).

– Propõe superar a visão materialista e entrever um “mais além” que a técnica não pode dar, ou seja, a técnica não é a única explicação do ser humano (CV 70).

– Alerta para o perigo das visões utópicas e ideológicas, para os que defendem a volta ao passado, de maneira a frear o próprio desenvolvimento tecnológico. Se o progresso técnico é algo absoluto, então o ser humano pode se eximir dessa responsabilidade, porque quem comanda o processo é a própria técnica, desvinculada da dimensão sociocultural. E se, pelo contrário, o ser humano quer retornar a um passado que já não é mais acessível, também pode isentar-se de sua responsabilidade no presente, naquilo que já ocorre no desenvolvimento tecnológico.

– Destaca que o desenvolvimento tecnológico pode induzir à ideia de autossuficiência da própria técnica, quando o ser humano, interrogando-se sobre o “como”, deixa de questionar os muitos “porquês” pelos quais é impelido a agir. É preciso, portanto, uma apreciação moral e ética do desenvolvimento tecnológico.

3. LAUDATO SI

O Papa Francisco, por meio da encíclica Laudato si’, tece considerações a respeito da tecnologia, a saber:

Considera-a como expressão de criatividade e beleza, embora critique os riscos de um poder excessivo, a ponto de se tornar uma dominação nas mãos de uma pequena parcela da humanidade e em detrimento dos demais (capítulo 3).

Chama a atenção para o fato de que a rapidez da evolução tecnológica não foi acompanhada, na mesma velocidade, pelo desenvolvimento da consciência, da ética e da espiritualidade do ser humano (capítulo 3).

Preocupa-se com o fato de que o sujeito vai sendo ressignificado a partir de um processo lógico-racional e, portanto, deixando de lado outros aspectos fundamentais da condição humana. Em tal paradigma, a técnica se expressa como posse, domínio e transformação de algo que estaria “fora”, como mero objeto do sujeito, como uma realidade informe, totalmente disponível para manipulação.

Traz à consciência o que chama de “ruído dispersivo da informação”, baseado no fato de que a inteligência artificial está preparada para fornecer todo tipo de resposta, mesmo imprecisas ou incorretas, não favorecendo o desenvolvimento da capacidade de viver com sabedoria – a qual se baseia no diálogo, na reflexão e no encontro generoso entre as pessoas –, gerando aquilo que Franscisco chama de “poluição mental”, constituída de uma mera acumulação de dados.

O QUE A PRÓPRIA IGREJA AFIRMA SOBRE A IA

Em outubro do ano passado, o Papa Francisco e o Vaticano defenderam a regulamentação urgente da IA. Como consequência, o Pontífice escolheu o tema “Inteligências artificiais e paz” para o Dia Mundial da Paz de 2024, celebrado em 1º de janeiro. Além disso, a cidade-estado criou o seu próprio guia de ética e princípios para uso da IA.

A Santa Sé fez um apelo para que governantes de todo o mundo discutam regras para a inteligência artificial. Querendo priorizar os humanos em detrimento das máquinas, a Igreja Católica ainda pediu para que se evite “contribuir para a disseminação de um sistema de desinformação”.

Segundo consta no comunicado emitido pelo Vaticano, “a evolução dos sistemas de inteligência artificial torna cada vez mais natural a comunicação por meio de máquinas e com elas, de modo que é cada vez mais difícil distinguir o cálculo do pensamento, a linguagem produzida por uma máquina daquela gerada pelos seres humanos”.

O Papa Francisco e o Vaticano deixam claro que não são a favor do fim da IA, mas sim de estabelecer limites para o uso da tecnologia.

“É fundamental orientar a inteligência artificial e os algoritmos para que todos formem uma consciência responsável sobre o uso e desenvolvimento dessas novas formas de comunicação que se somam às das redes sociais e da internet”.

O manual com o código de ética sobre o uso da inteligência artificial conta com 140 páginas e foi idealizado graças a uma parceria entre o Dicastério para a Cultura e a Educação do Vaticano e o Centro Markkula para a Ética Aplicada, da Universidade de Santa Clara, nos Estados Unidos.

Segundo a Igreja Católica, o documento foi criado para ajudar as pessoas em todas as etapas da tecnologia, desde a programação até o uso diário. Ann Skeet, coautora do manual, afirma que a linguagem do livro é adequada para os negócios e a engenharia, para que os profissionais dessas áreas realmente usem as recomendações e padrões que já conhecem.

O manual de IA do Vaticano está disponível em  https://curtlink.com/SBfNAeM para download. Em inglês, conta com sete princípios orientadores da tecnologia e 46 princípios específicos. Um desses princípios é o do “Respeito pela dignidade e direitos humanos”, focado na “privacidade e confidencialidade”.

Foto: Vatican Media

MANIFESTAÇÕES DO PAPA FRANCISCO SOBRE A IA

O SÃO PAULO apresenta algumas considerações do Pontífice extraídas da mensagem alusiva ao Dia Mundial da Paz de 2024:

“Os avanços tecnológicos que não conduzem a uma melhoria da qualidade de vida da humanidade inteira, nunca poderão ser considerados um verdadeiro progresso”. O apelo à Comunidade Internacional para que adote “um tratado internacional vinculativo, que regule o desenvolvimento e o uso da inteligência artificial nas suas variadas formas”.

“A inteligência é expressão da dignidade que nos foi dada pelo Criador, que nos fez à sua imagem e semelhança e nos tornou capazes, através da liberdade e do conhecimento, de responder ao seu amor. Esta qualidade fundamentalmente relacional da inteligência humana manifesta-se de modo particular na ciência e na tecnologia, que são produtos extraordinários do seu potencial criativo”.

“O progresso da ciência e da técnica – na medida em que contribui para uma melhor organização da sociedade humana, para o aumento da liberdade e da comunhão fraterna – leva ao aperfeiçoamento do homem e à transformação do mundo”.

“”Os progressos técnico-científicos, que permitem exercer um controle – até agora inédito – sobre a realidade, colocam nas mãos do homem um vasto leque de possibilidades, algumas das quais podem constituir um risco para a sobrevivência humana e um perigo para a Casa comum”.

“Os progressos da informática e o desenvolvimento das tecnologias digitais, nas últimas décadas, começaram já a produzir profundas transformações na sociedade global e nas suas dinâmicas. Os novos instrumentos digitais estão mudando a fisionomia das comunicações, da administração pública, da instrução, do consumo, dos intercâmbios pessoais e de inúmeros outros aspectos da vida diária”.

“A imensa expansão da tecnologia deve ser acompanhada por uma adequada formação da responsabilidade pelo seu desenvolvimento. A liberdade e a convivência pacífica ficam ameaçadas, quando os seres humanos cedem à tentação do egoísmo, do interesse próprio, da ânsia de lucro e da sede de poder”.

“Por isso, temos o dever de alargar o olhar e orientar a pesquisa técnico-científica para a prossecução da paz e do bem comum, ao serviço do desenvolvimento integral do homem e da comunidade”.

“A dignidade intrínseca de cada pessoa e a fraternidade que nos une como membros da única família humana devem estar na base do desenvolvimento de novas tecnologias e servir como critérios indiscutíveis para as avaliar antes da sua utilização, para que o progresso digital possa verificar-se no respeito pela justiça e contribuir para a causa da paz. Os avanços tecnológicos que não conduzem a uma melhoria da qualidade de vida da humanidade inteira, mas pelo contrário agravam as desigualdades e os conflitos, nunca poderão ser considerados um verdadeiro progresso”.

“A inteligência artificial é utilizada em campanhas de desinformação que espalham notícias falsas e levam a uma desconfiança crescente relativamente aos meios de comunicação”.

“A grande quantidade de dados analisados pelas inteligências artificiais não é, por si só, garantia de imparcialidade. Quando os algoritmos extrapolam informações, correm sempre o risco de as distorcer, replicando as injustiças e os preconceitos dos ambientes onde têm origem. Quanto mais rápidos e complexos eles se tornam, mais difícil é compreender por que produziram um determinado resultado”.

“As máquinas inteligentes podem desempenhar as tarefas que lhes são atribuídas com uma eficiência cada vez maior, mas a finalidade e o significado das suas operações continuarão sendo determinados ou capacitados por seres humanos com o seu próprio universo de valores”.

“Não se deve permitir que os algoritmos determinem o modo como entendemos os direitos humanos, ponham de lado os valores essenciais da compaixão, da misericórdia e do perdão, ou eliminem a possibilidade de um indivíduo mudar e deixar para trás o passado”.

“O impacto das novas tecnologias no âmbito do trabalho: trabalhos, que outrora eram prerrogativa exclusiva da mão-de-obra humana, acabam rapidamente absorvidos pelas aplicações industriais da inteligência artificial. Também neste caso, há substancialmente o risco de uma vantagem desproporcionada para poucos à custa do empobrecimento de muitos.  A comunidade internacional, ao ver como tais formas de tecnologia penetram cada vez mais profundamente nos locais de trabalho, deveria considerar como alta prioridade o respeito pela dignidade dos trabalhadores e a importância do emprego para o bem-estar econômico das pessoas, das famílias e das sociedades, a estabilidade dos empregos e a equidade dos salários”.

“Nestes dias, contemplando o mundo que nos rodeia, não se pode ignorar as graves questões éticas relacionadas ao setor dos armamentos. A possibilidade de efetuar operações militares por meio de sistemas de controle remoto levou a uma percepção menor da devastação por eles causada e da responsabilidade da sua utilização, contribuindo para uma abordagem ainda mais fria e destacada da imensa tragédia da guerra”.

“Numa ótica mais positiva, se a inteligência artificial fosse utilizada para promover o desenvolvimento humano integral, poderia introduzir inovações importantes na agricultura, na instrução e na cultura, uma melhoria do nível de vida de inteiras nações e povos, o crescimento da fraternidade humana e da amizade social. Em última análise, a forma como a utilizamos para incluir os últimos, isto é, os irmãos e irmãs mais frágeis e necessitados, é a medida reveladora da nossa humanidade”.

“Os jovens estão crescendo em ambientes culturais impregnados de tecnologia, o que não pode deixar de pôr em causa os métodos de ensino e formação. É necessário que os jovens desenvolvam uma capacidade de discernimento no uso de dados e conteúdos recolhidos na internet ou produzidos por sistemas de inteligência artificial. As escolas, as universidades e as sociedades científicas são chamadas a ajudar os estudantes e profissionais a assumir os aspectos sociais e éticos do progresso e da utilização da tecnologia”.

“A comunidade das nações deve trabalhar unida para adotar um tratado internacional vinculativo, que regule o desenvolvimento e o uso da inteligência artificial nas suas variadas formas. Nos debates sobre a regulamentação da inteligência artificial, deve ser levada em conta as vozes de todas as partes interessadas, incluindo os pobres, os marginalizados e outros que muitas vezes permanecem ignorados nos processos de decisão globais”.

Francisco conclui a mensagem, desejando que “os progressos no desenvolvimento de formas de inteligência artificial sirvam, em última análise, a causa da fraternidade humana e da paz”, e espera “que o rápido desenvolvimento de formas de inteligência artificial não aumente as já demasiadas desigualdades e injustiças presentes no mundo, mas contribua para pôr fim às guerras e conflitos e para aliviar muitas formas de sofrimento que afligem a família humana”.

*Jornal da Arquidiocese de São Paulo

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