Pontificado foi marcado por gestos, palavras e reformas que buscaram transmitir ‘a alegria do Evangelho’ e aproximar a Igreja dos vivem à margem da sociedade
Por Filipe Domingues / O São Paulo
O primeiro Papa a se chamar “Francisco”, inspirado pelo santo pobre de Assis, encerrou sua missão na Terra após quase 12 anos de pontificado. O argentino Jorge Mario Bergoglio, o Papa Francisco, morreu na segunda-feira, 21 de abril, aos 88 anos de idade.
O anúncio foi feito pelo Camerlengo Farrell da Casa Santa Marta: “Às 7h35 desta manhã, o Bispo de Roma, Francisco, retornou à casa do Pai. Toda a sua vida foi dedicada ao serviço do Senhor e da Igreja”
Ainda não foram divulgados os detalhes do seu funeral, que pela primeira vez será celebrado com um rito mais simples, por escolha do próprio Papa Francisco.
Dos encontros com os pobres, doentes e encarcerados à defesa do meio ambiente e às reformas estruturais que iniciou na Igreja Católica, o Papa Francisco buscou promover, em gestos e palavras, a “alegria do Evangelho”. Já em seu primeiro documento programático, a exortação apostólica Evangelii gaudium, publicada em novembro de 2013, ele afirmou: “A alegria do Evangelho preenche o coração e a vida inteira dos que se encontram com Jesus”. Sua maior crítica foi ao individualismo, a “consciência isolada”, que, em sua visão, produz tristeza e indiferença.
IGREJA ‘EM SAÍDA’
O então Arcebispo de Buenos Aires foi eleito Papa em 13 de março de 2013, sucedendo o Papa Bento XVI, que havia renunciado. Francisco foi o primeiro Papa latino-americano da história, e também o primeiro sacerdote jesuíta a chegar ao trono do apóstolo Pedro.
O longo intervalo entre a renúncia do Papa Bento XVI, em 11 de fevereiro daquele ano, e o conclave que elegeu Francisco permitiu que a Igreja pudesse discutir abertamente quais seriam as qualidades do novo Pontífice. Buscava-se um Papa reformador. A maior reforma de Francisco, entretanto, foi colocar a Igreja “em saída”, como ele mesmo definiu.
Ele acreditava fielmente que a Igreja precisava ir ao encontro de todos, onde quer que estivessem, especialmente nas realidades humanas de maior sofrimento. O Cardeal Bergoglio, então com 76 anos, foi eleito para reorganizar as estruturas da Cúria Romana, tornando-a mais servidora e mais colaborativa com a Igreja global. Mais ainda, o objetivo era revigorar o anúncio do Evangelho em um mundo fortemente secularizado e fragmentado.
Um discurso que ele fez durante as congregações gerais, em 9 de março daquele ano – reuniões dos cardeais eleitores e não eleitores antes do conclave – foi decisivo para que o nome de Bergoglio liderasse as votações. Na ocasião, ele disse: “A Igreja é chamada a sair de si mesma e ir em direção às periferias, não só aquelas geográficas, mas também aquelas existenciais. Aquelas do mistério do pecado, da dor, da injustiça, aquelas da ignorância e da ausência de fé, aquelas do pensamento, aquelas de toda forma de miséria.” Enquanto alguns batem à porta da Igreja para entrar, e nem sempre a encontram aberta, “a Igreja autorreferencial tem a pretensão de que Jesus Cristo está dentro dela, e não o deixa sair”, disse ele. Essa Igreja crê que tem luz própria, em vez de refletir a luz de Cristo no mundo, continuou.
Em sua primeira missa como Papa, celebrada com os cardeais eleitores na Capela Sistina, em 14 de março de 2013, Francisco falou de três movimentos essenciais: caminhar, edificar e confessar. Uma “Igreja em saída”, sinalizava, era uma Igreja em movimento, que não permanece congelada, fixa, que não para de acompanhar os sinais do tempo. “Caminhar sempre, na presença do Senhor”, afirmou. Mas também é uma Igreja fundada em Cristo, “edificada”, com raízes fortes na história e na tradição. Por fim, é uma Igreja que “confessa Cristo”, que vive e promove a fé, que reza e contempla, pois “se não confessarmos Cristo, nos tornaremos uma ONG assistencial”, dizia sempre.
ZELO APOSTÓLICO
Em tudo o que fez como Papa, em todos os seus discursos, Francisco promoveu essa dimensão missionária da Igreja. Ele usou muitas outras imagens, metáforas, para defini-la, como, por exemplo, a Igreja como “hospital de campanha”, que está aberto a curar as feridas de quem quer que seja, onde quer que esteja. Falava das periferias geográficas e existenciais, criticava a “cultura do descarte” e a “globalização da indiferença”.
“Vejo com clareza que a coisa de que a Igreja precisa mais hoje é a capacidade de curar as feridas e aquecer os corações dos fiéis, a proximidade”, disse, em uma entrevista a La Civiltà Cattolica, em setembro de 2013. “Eu vejo a Igreja como um hospital de campanha, depois de uma batalha. É inútil perguntar a um ferido grave se ele tem colesterol ou nível de açúcar elevado! É preciso curar suas feridas. Depois podemos falar de todo o resto. Curar as feridas, curar as feridas… E é preciso começar de baixo.”
Usando linguagem simples e aproximando-se dos “descartados” da sociedade, Papa Francisco fez jus ao seu nome e, fortalecendo a antiga tradição dos Papas que oferecem caridade aos mais necessitados, foi ao encontro daqueles que estão à margem da sociedade: os pobres, os doentes, os moradores de rua, os idosos, os indígenas, os prisioneiros, as pessoas com deficiência, os migrantes e refugiados.
Desde o primeiro dia, ele se apresentou ao mundo como “bispo de Roma”, um sacerdote e pastor. Em audiência geral, de 2023, ele declarou: “O zelo apostólico nunca é uma simples repetição de um estilo adquirido, mas um testemunho de que o Evangelho está vivo aqui, para nós, hoje. Conscientes disto, olhemos, portanto, para a nossa época e para a nossa cultura como um dom. Elas são nossas e evangelizá-las não significa julgá-las de longe, nem ficar numa varanda gritando o nome de Jesus, mas descer para as ruas, ir aos lugares onde se vive, frequentar os espaços onde se sofre, se trabalha, se estuda e se reflete, habitar as esquinas onde os seres humanos compartilham o que faz sentido para suas vidas.”
Priorizando esse zelo pastoral, também procurou curar as feridas, com diferentes gestos de acolhimento, entre aqueles que se sentiam afastados da Igreja. Entre eles, as pessoas que vivem em uma segunda união conjugal, os homossexuais, as vítimas de abusos, entre outros. Sem mudar a doutrina da Igreja sobre questões de fé e moral, ele procurou aplicar a abordagem de Cristo diante da “ovelha perdida”.
A imagem do Bom Pastor, disse ele em uma audiência geral de maio de 2016, é aquela do “pastor que carrega sobre os ombros a ovelha perdida” e representa “a solicitude de Jesus diante dos pecadores e a misericórdia de Deus que não se conforma com perder ninguém”. A proximidade de Cristo com os pecadores, disse Francisco, “não deve escandalizar, mas, ao contrário, deve provocar em todos uma séria reflexão sobre como vivemos a nossa fé”.
Com a intenção de renovar espiritualmente a Igreja e o mundo, o Papa Francisco convocou, entre 2015 e 2016, um ano jubilar dedicado ao tema da misericórdia. “O perdão é o sinal mais visível do amor do Pai, que Jesus quis revelar em toda a sua vida”, escreveu na carta apostólica Misericordia et misera, à conclusão daquele Jubileu Extraordinário. “Nada que um pecador arrependido coloque diante da misericórdia de Deus pode ficar sem o abraço do seu perdão. É por este motivo que nenhum de nós pode pôr condições à misericórdia; esta permanece sempre um ato de gratuidade do Pai celeste, um amor incondicional e não merecido”, continuou.
TRÊS GRANDES PREOCUPAÇÕES
O contexto histórico do pontificado de Francisco foi complexo. Como ele costumava dizer, não vivemos em uma “época de mudanças, mas em uma mudança de época”. Ainda assim, talvez seja possível destacar três temas que foram especialmente caros ao Papa: o meio ambiente, a migração e a paz. Nesses três pontos, ele se colocou em diálogo com o mundo e promoveu a unidade e cooperação entre os povos.
Francisco foi o primeiro Sumo Pontífice a publicar uma encíclica – documento de maior peso entre aqueles escritos por um Papa – dedicada principalmente à questão ambiental. A Laudato si’, de 2015, é endereçada a “todas as pessoas que habitam neste planeta”, diante da “deterioração global do ambiente”. O Papa entrou em diálogo com o mundo da ciência e da política, além de outros líderes cristãos, apresentando propostas “éticas e espirituais” para solucionar o problema ambiental. Em sua visão, não basta oferecer respostas técnicas para os desafios humanos.
Como São Francisco de Assis, ele propôs à humanidade “cuidar de tudo o que existe”, pois ao planeta Terra é Criação de vida, a nossa “casa comum”. Escreveu Francisco: “O urgente desafio de proteger a nossa casa comum inclui a preocupação de unir toda a família humana na busca de um desenvolvimento sustentável e integral, pois sabemos que as coisas podem mudar. O Criador não nos abandona, nunca recua no seu projecto de amor, nem Se arrepende de nos ter criado.”
Ele voltou à questão ambiental inúmeras vezes, associando-o diretamente aos problemas sociais: são os mais pobres e indefesos os que mais sofrem as consequências dos desastres ambientais. A Laudato si’ foi lida e debatida internacionalmente, influenciando, inclusive, a Conferência do Clima das Nações Unidas de 2015 (COP21), que chegou ao histórico Acordo de Paris. Em 2023, Francisco publicou outro documento, a exortação apostólica Laudate Deum, insistindo na urgência de se reverter as mudanças climáticas causadas pela ação humana.
A questão migratória também permeou diversos momentos do pontificado do Papa Francisco. Sua primeira viagem como Papa foi para Lampedusa, pequena ilha em território italiano, conhecida por ser um ponto de chegada na Europa de centenas de milhares de migrantes, vindos da África e da Àsia. Francisco chamou o Mar Mediterrâneo de um “cemitério a céu aberto” e criticou as autoridades globais por não coordenarem ações humanitárias em favor dos migrantes.
“‘Onde está o teu irmão? A voz do seu sangue clama a Mim’, diz o Senhor Deus. Esta não é uma pergunta posta a outros; é uma pergunta posta a mim, a ti, a cada um de nós. Estes nossos irmãos e irmãs [migrantes] procuravam sair de situações difíceis, para encontrarem um pouco de serenidade e de paz; procuravam um lugar melhor para si e suas famílias, mas encontraram a morte. Quantas vezes outros que procuram o mesmo não encontram compreensão, não encontram acolhimento, não encontram solidariedade! E as suas vozes sobem até Deus”, disse, em julho de 2013.
Papa Francisco enxergou a paz fragilizada no mundo desde o início do seu pontificado. Ele dizia que o mundo vive uma “Terceira Guerra Mundial em pedaços”, pois, em vez de um grande conflito global, enfrenta várias guerras menores, mas não menos sangrentas. Em seus discursos durante a pandemia da COVID-19, entre 2020 e 2021, ele dizia que “estamos todos no mesmo barco” e que o mundo poderia sair melhor ou pior daquela crise, mas não igual.
Infelizmente, duas guerras de peso internacional se seguiram: aquela que derivou da invasão da Ucrânia pela Rússia, e o acirramento dos conflitos entre Israel e o Hamas, na Faixa de Gaza. Em diferentes ocasiões, Papa Francisco afirmou que “a guerra é sempre um mal”, e que os únicos vencedores são “os vendedores de armas”. O Papa colocou a estrutura diplomática da Santa Sé a serviço dos povos atingidos pela guerra, tentou esforços de mediação, mas não obteve sucesso na suspensão dos conflitos. Ainda assim, Francisco rezava diariamente pela paz.
REFORMAS ESTRUTURAIS
Como homem de governo, o Papa Francisco foi alguém que iniciou uma série de processos ainda sem conclusão. Ele mesmo dizia na Evangelii gaudium, em 2013, que “o tempo é superior ao espaço” e, portanto, é preciso trabalhar olhando sempre para o longo prazo, “sem a obsessão dos resultados imediatos”. O “dinamismo da realidade” deve ser enfrentado com paciência, dando tempo aos processos, dizia.
Papa Francisco trabalhava muito, talvez até demais. Quase não tirava dias de descanso. Mas também sabia que as sementes plantadas hoje levam tempo para crescer. No décimo ano de seu pontificado, ele promulgou a constituição apostólica Praedicate evangelium. Para chegar nesse ponto, criou o Conselho de Cardeais (C9), uma demanda ouvida antes da eleição. Trata-se de um comitê de nove cardeais que auxiliam o Papa no governo da Igreja e, especialmente, na reforma das estruturas do Vaticano. Francisco dizia que a Cúria Romana ainda funcionava como uma corte monárquica – como se ele fosse um rei com poderes absolutos, que precisa ser bajulado e saciado – e isso, em suas palavras, “é uma lepra”, uma doença no coração da Igreja.
A reforma do zelo apostólico deveria, portanto, colocar o Evangelho ao centro de tudo, e reconhecer o Papa como Bispo de Roma, Sucessor do apóstolo Pedro, um pescador chamado por Cristo para liderar os seus. Concretamente, entre as reformas estruturais, e construindo sobre bases estabelecidas por Bento XVI, ele também melhorou as normas e orientações da Igreja para lidar com o problema dos abusos sexuais, morais e de poder. Em outras áreas, promoveu revisões e atualizações de estatutos em diferentes instituições da Igreja no mundo todo, consolidou uma reforma dos organismos financeiros do Vaticano e limitou os mecanismos que pudessem dar a impressão que trabalhar na Igreja é “fazer carreira”.
REFORMA DA ESCUTA

Na mensagem para o 56º Dia Mundial das Comunicações, o Papa Francisco escreveu: “Também na Igreja, há grande necessidade de escutar e de nos escutarmos. É o dom mais precioso e profícuo que podemos oferecer uns aos outros. Nós, cristãos, nos esquecemos de que o serviço da escuta nos foi confiado por aquele que é o ouvinte por excelência e em cuja obra somos chamados a participar.”
Além de promover mais transparência e mais interação nos processos decisionais da Igreja, especialmente no Vaticano, Francisco entra para a história como o Papa da sinodalidade, da escuta. Por crer que a Igreja esteja sempre “em caminho”, e num caminho que se faz juntos, ele organizou muitos encontros sinodais importantes: o Sínodo sobre a Família (2015-2016), o Sínodo sobre os Jovens (2018), o da Sínodo Amazônia (2019) e, por fim, o Sínodo sobre a Sinodalidade (2021-2024).
Este último reorganizou a dinâmica do Sínodo, que realizou a maior consulta já organizada na história da Igreja. De tema bastante abrangente, o Sínodo sobre a Igreja Sinodal foi, essencialmente, sobre como a Igreja se organiza e toma decisões conjuntas. Francisco acreditava que o caminho deveria ser percorrido entre irmãos e irmãs, com confiança mútua na unidade, respeitando as diferenças.
Nesse sentido, as assembleias deste Sínodo incluíram, pela primeira vez, junto aos Bispos, pessoas leigas, religiosos e religiosas, que tiveram as mesmas oportunidades de fala e de voto. Trata-se, ainda, de um processo espiritual partilhado, de escuta da vontade de Deus. “O caminho sinodal é o caminho que Deus espera da Igreja do terceiro milênio”, afirmava.
O princípio da sinodalidade, segundo a Comissão Teológica daquele Sínodo, é “a ação do Espírito na comunhão do Corpo de Cristo e no caminho missionário do Povo de Deus”. Em outras palavras, os dons do Espírito chegam a todos os fiéis batizados “e se manifestam de muitas formas, com igual dignidade”.
A IGREJA QUE SONHOU
Francisco desejou uma Igreja mais participativa, mais aberta e sintonizada com os sinais dos tempos – como pedia o Concílio Vaticano II. Assim, ela vive melhor a comunhão e a missão, dizia. Na prática, ele promoveu o que chamava de “cultura do encontro” dentro da própria Igreja – é algo que, ele esperava, deveria durar para além de seu pontificado.
Entretanto, ele criticava continuamente o “mundanismo espiritual”, ou seja, a prática da religião sem a sua dimensão transcendente, divina. A Igreja que ele sonhou, portanto, pode se resumir em duas palavras: adoração e serviço. “Amar a Deus se faz com adoração e serviço”, afirmou o Papa Francisco na missa de conclusão da assembleia sinodal de outubro de 2023.
“A adoração é a primeira resposta que podemos oferecer ao amor gratuito, ao amor surpreendente de Deus”, disse. “É esta, irmãos e irmãs, a Igreja que somos chamados a sonhar: uma Igreja serva de todos, serva dos últimos. Uma Igreja que acolhe, serve, ama, perdoa, sem nunca exigir antes um atestado de boa conduta. Uma Igreja com as portas abertas, que seja porto de misericórdia”, completou.