Algumas dioceses se pronunciaram a favor da declaração, outras foram mais cautelosas e houve ainda outras que decidiram não aplicá-la, como, de resto, vem acontecendo no resto do mundo
Por Natalia Zimbrão / ACI Digital
A declaração Fiducia supplicans, que admite bênçãos a casais irregulares e uniões do mesmo sexo, teve recepções distintas entre o clero no Brasil. Enquanto algumas dioceses se pronunciaram a favor da declaração, outras foram mais cautelosas e houve ainda outras que decidiram não aplicá-la, como, de resto, vem acontecendo no resto do mundo.
A declaração Fiducia supplicans: sobre o sentido pastoral das bênçãos foi publicada em 18 de dezembro pelo Dicastério para a Doutrina da Fé. O documento estabelece uma distinção entre bênçãos litúrgicas e espontâneas e diz “que se pode entender a possibilidade de bendizer os casais em situações irregulares e as duplas do mesmo sexo, sem convalidar oficialmente seu status nem alterar de modo algum a doutrina perene da Igreja sobre o Matrimônio”.
Essa doutrina está expressa no Catecismo da Igreja Católica, que diz, no número 1.640: “O vínculo matrimonial é, portanto, estabelecido pelo próprio Deus, de maneira que o matrimónio ratificado e consumado entre batizados não pode jamais ser dissolvido”.
O catecismo também ensina, no número 2.357, que: “Apoiando-se na Sagrada Escritura, que os apresenta como depravações graves (103) a Tradição sempre declarou que os atos de homossexualidade são intrinsecamente desordenados” e “não podem, em caso algum, ser aprovados”.
No sábado (23), ao final de uma missa de ordenação sacerdotal, o bispo de Formosa (GO), dom Adair José Guimarães, anunciou que “na diocese de Formosa não serão observadas essas solicitações e sugestões da Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé”. O bispo fez um pronunciamento sobre Fiducia supplicans e também sobre as respostas do dicastério às perguntas feitas pelo bispo de Santo Amaro (SP), dom José Negri, se pessoas que se identificam como transgênero podem ser batizadas e testemunhas de matrimônio.
Dom Adair disse que não entraria “no mérito da Teologia, da dimensão pastoral e moral dessas duas declarações, nem sobre a sua oportunidade neste tempo”, mas destacou “que as duas declarações suscitaram grandes debates como ainda estão na mídia e apreensão aos fiéis”.
Dom Adair Guimarães disse que consultou várias lideranças leigas e também os padres da diocese de Formosa, para saber se a aplicação dessas declarações “causariam escândalo e incompreensão, como as próprias declarações preveem isso para análise dos bispos”. Segundo ele, “os leigos foram unânimes em dizer que sim” e, dos padres que responderam, praticamente unanimemente disseram que “essas aplicações trariam incompreensões e escândalo”.
O bispo contou que também se reuniu com o conselho presbiteral e o colégio de consultores da diocese e “todos foram unânimes” ao dizer que a diocese de Formosa “não tem condição de aplicar essas sugestões”.
A diocese de Formosa “já tem uma prática” de acolher as pessoas que têm atração homossexual e casais em segunda união. “Uma acolhida na caridade, na fraternidade e na verdade”, disse dom Adair. “As pessoas dentro dessas situações precisam também ser orientadas quanto à doutrina da Igreja, à tradição da Igreja e às orientações do magistério autêntico da Igreja”.
A diocese de Petrópolis (RJ) publicou uma nota assinada pelo administrador diocesano, monsenhor José Maria Pereira, e pelo doutor em Filosofia e mestre em Teologia Moral padre Anderson Alves. A nota diz que o documento do Dicastério da Doutrina da Fé “não pode ser interpretado de modo dialético, segundo uma lógica de confronto ou da ruptura, mas de modo harmônico com os textos anteriores”.
A nota da diocese recorda o Responsum a uma dúvida sobre bênção de uniões de pessoas do mesmo sexo, publicado em fevereiro de 2021 pela então Congregação para a Doutrina da Fé, que responde “negativamente” à pergunta: “A Igreja dispõe do poder de abençoar as uniões de pessoas do mesmo sexo?”. Este documento de 2021 “não exclui que sejam dadas bênção a indivíduos com inclinação homossexual, que manifestem a vontade de viver na fidelidade aos desígnios revelados de Deus, assim como propostos pelo ensinamento eclesial, mas declara ilícita toda forma de bênção que tenda a reconhecer suas uniões”.
A nota da diocese de Petrópolis destaca que o documento publicado em 18 de dezembro “é uma Declaração, ou seja, o tipo mais simples de documentos magisteriais. Constitui uma manifestação do Magistério acerca de um tema controverso, sem força de definição”.
Cita, em seguida, o que esta declaração afirma “em consonância” com o documento anterior, como: o fato de permanecer “firme na doutrina tradicional da Igreja sobre o matrimônio” e de serem “inadmissíveis” “ritos e orações que possam criar confusão entre o que é constitutivo do casamento, como uma união exclusiva, estável e indissolúvel entre um homem e uma mulher, naturalmente aberta a ter filhos”; que pessoas em “situação objetiva de pecado” e que pedem “espontaneamente” uma bênção “podem receber uma oração do sacerdote, uma invocação da misericórdia e da ajuda de Deus para que possam viver de acordo com a vontade de Deus” e “isso deve ser ocasião de lhes anunciar o Querigma”.
“São proibidas, portanto, bênçãos a grupos que pretendam com isso justificar uma situação irregular, objetivamente contrária à moral cristã e à verdadeira natureza do matrimônio, o que causaria confusão e escândalo entre os fiéis”, diz a nota.
Acrescenta que “a Igreja é Mãe e Mestra e nunca abandona os seus filhos” e “não priva a ninguém dos seus bens espirituais”. “Nesse sentido, pessoas que vivem em situação irregular e querem receber a bênção da Igreja devem ser convidadas a participar das Missas, durante as quais receberão o anúncio da Palavra, os benefícios da oração da Igreja e a bênção final que é sempre dirigida a todos”.
A diocese recorda ainda que está vivendo “o seu Ano da Fé” e, por isso, convida todos a participarem “da adoração ao Santíssimo Sacramento, especialmente nas quintas-feiras, e a receber com fé e piedade a sua bênção”. “Com esse ato bendizemos a deus, pedimos as graças necessárias à nossa santificação e nos unimos ao Santo Padre. Os que tiverem se confessado, rezado pelo papa e feito o propósito de romper com o pecado recebem ainda a indulgência plenária, que é fonte de alegria e fruto apostólico”, diz.
A diocese de Campanha (MG) também publicou uma nota sobre Fiducia supplicans, assinada pelo bispo dom Pedro Cunha Cruz e pelo chanceler do bispado, cônego Bruno Cesar Dias Graciano. “É fundamental salientar que não se trata de um texto legislativo, não estabelece normas canônicas obrigatórias, e tampouco é uma declaração dogmática. Ao contrário, devemos percebê-la como um guia que visa orientar as bênçãos dadas a pessoas que vivem a fé católica, mesmo que estejam em uniões irregulares, incluindo as homoafetivas”, diz a nota, usando o adjetivo “homoafetivo” criado pela desembargadora gaúcha Maria Berenice Dias.
A nota diz uma bênção “é um sacramental e não se equipara a sacramento”, por isso, “sua concessão não implica na legitimação da união das pessoas que as recebem”.
“Não há mudança em relação à Doutrina sobre o sacramento do Matrimônio, que permanece uno e indissolúvel entre um homem e uma mulher”, ressalta.
“Estamos em um momento de agitações e controvérsias em que é crucial compreendermos o contexto que motiva esta declaração: uma bênção pode ser o início de um processo de conversão verdadeira. Lembremo-nos que a Graça de Deus opera por meios que muitas vezes nos escapam”, acrescenta.
O administrador apostólico de Aracaju (SE) e bispo de Propriá, dom Vítor Agnaldo de Menezes e o bispo de Estância (SE), dom José Genivaldo Garcia, publicaram uma nota, na qual exortam “que os seminaristas” da província eclesiástica de Sergipe, “bem como o clero em geral, evitem qualquer tipo de comentário que destoe das exatas orientações proferidas” na declaração Fiducia supplicans, “devidamente aprovada pelo papa Francisco, e aqui por nós bispos acolhidas, visto que deve prevalecer sempre e por toda a parte a Unidade da Igreja e a autoridade do Romano Pontífice”.
Os bispos destacam que “o documento não aprovou objetivamente a bênção de uniões entre pessoas do mesmo sexo ou de situações irregulares, mas das pessoas que, embora vivam numa situação de pecado ou irregular, em uma esfera de maior espontaneidade e liberdade buscam livremente um ministro para invocar a proteção e o auxílio de Deus para que consigam realizar a vontade de Deus conforme os Seus Mandamentos, vez que as bênçãos têm como destino pessoas, objetos de devoção, lugares de vida, etc., conforme atesta a Tradição e a Bíblia”.
Assim, dizem, a “bênção se transforma em inclusão, solidariedade e pacificação”. “É uma mensagem positiva de conforto, cuidado e encorajamento, expressando o abraço misericordioso de Deus a cada pessoa (pecador) e a maternidade da Igreja”.
“Em continuidade ao Concílio Vaticano II, o papa Francisco compreende o ser humano não somente a partir do ato que realiza, mas também com suas intenções e nas circunstâncias na qual pratica determinado ato. Além disso, convida a confiar e estimular a abertura à graça que atua na consciência dos fiéis ajudando-os a viver da melhor forma que podem o Evangelho (Amoris Laetitia, 37)”, dizem os bispos.
Para eles, “o magistério do papa Francisco assume uma visão inclusiva dos diversos rostos que experimentam o dom de Deus (Evangelii Gaudium, 116), convidando a todos a percorrer a via da caridade (Amoris Laetitia, 306), pois na Igreja há lugar para todos e não pode se configurar a uma alfândega, onde se pretende controlar a graça (Evangelii Gaudium, 47)”.
“Assim, ante o pedido de bênção, não pode o ministro ordenado se recusar a abençoar essas pessoas, pois em si mesmas consideradas, são conforme a vontade de Deus, pois a existência sempre é um bem, devendo tal pedido ser acolhido e valorizado ‘fora de uma estrutura litúrgica’, mas sim, numa perspectiva da piedade popular como atos de devoção”, acrescentam.