Doze meses, a partir de 13 de março de 2023 até hoje, marcados por mais de 150 apelos pela “martirizada” Ucrânia e por mais de 60 por um cessar-fogo no Oriente Médio, acompanhados pelo convite aos líderes das nações a “esforços criativos” por uma “paz justa e duradoura” e à “coragem da negociação”, sempre movidos pela angústia de ver a humanidade atravessar “uma hora sombria”.
Salvatore Cernuzio – Vatican News
Me dói ver os mortos, jovens que não voltam. É difícil…
Foi exatamente há um ano. No dia em que comemorava os 10 anos de pontificado, o Papa compartilhava a sua íntima dor, partilhando aquela de milhares de mulheres e mães em todo o mundo, em um podcast – o primeiro – com a mídia do Vaticano. Seus pensamentos estavam particularmente voltados para os jovens que morreram em campo de guerra pela agressão contra a Ucrânia, que sempre foi descrita como “martirizada” ou, às vezes, “torturada”.
Não se trata de um epíteto cansado, como o de algumas críticas depreciativas, mas de um lembrete constante do tormento ao qual o povo ucraniano tem sido submetido desde 24 de fevereiro de 2022. A dor que Francisco vem compartilhando com o público em geral não diminuiu nesses 12 meses de seu décimo primeiro ano de pontificado, mas sim se aguçou diante da perspectiva de expansão do conflito no Leste Europeu – com o possível envio de tropas europeias e a ameaça de uma resposta nuclear – e ainda mais desde outubro com a irrupção do horror na Terra Santa, após o ataque terrorista do Hamas e a resposta militar israelense que causou cerca de 31 mil mortes em 5 meses. Uma outra daquelas “peças” que compõem o terceiro conflito global em andamento.
Oração silenciosa, tristeza pública
Diante dessa dor, o Papa Francisco, chefe da Igreja universal e aos 87 anos de idade um dos pontífices mais longevos, reza no silêncio do seu quarto, onde guarda ícones, cruzes e outros objetos representativos dos territórios feridos de onde vieram. A isso dá voz em cada pronunciamento público. Mais de 130 apelos que Jorge Mario Bergoglio fez desde 13 de março de 2023 até hoje para a Ucrânia, mais de 60 aqueles para o Oriente Médio e a população de Gaza.
Não houve um Angelus, Regina Caeli ou Audiência Geral em que o Papa não tenha feito referência à guerra, reiterado a proximidade com os povos afetados ou invocado a paz e a coragem da negociação como um exercício de sabedoria que impeça a prevalência de interesses partidários, proteja as legítimas aspirações de cada um e ponha fim à “loucura” da guerra.
Paz para a martirizada Ucrânia
Às vezes, foram apelos vigorosos – pronunciados mesmo quando a voz, devido à bronquite ou à gripe recorrente várias vezes nos últimos meses, não permitia – ou, com frequência, breves observações, memorandos fugazes ou alarmes para não deixar que o hábito ou o cinismo tomassem conta, quando até mesmo o drama de um ataque com mísseis a escolas e residências era rebaixado para “notícias atualizadas”. A esperança de uma paz justa e duradoura foi e é sempre o único pano de fundo das palavras do Papa neste décimo primeiro ano de pontificado, que vale a pena retomar em tempos de instrumentalização do seu pensamento ou diante de acusações de “equívoco” que, como o cardeal Pietro Parolin, secretário de Estado do Vaticano, apontou, sempre foi “o estilo” da Santa Sé.
O apelo à União Europeia
O Papa não desiste de buscar a paz, de esperar pela paz e de rezar por ela.
Francisco disse isso às famílias de refugiados que haviam chegado à Itália graças aos corredores humanitários, recebidos em audiência em 18 de março de 2023. E quatro dias depois, na Audiência Geral, recordou o ato de consagração da Rússia e da Ucrânia ao Imaculado Coração de Maria: “não nos cansemos de confiar a causa da paz à Rainha da Paz”, exortou, pedindo para renovar a cada 25 de março o ato de consagração a Nossa Senhora, “para que Ela, que é Mãe, nos proteja a todos na unidade e na paz”.
O Pontífice sempre pediu que o compromisso espiritual fosse acompanhado por “um compromisso coeso” política e diplomaticamente, a começar pela União Europeia. Um desafio “muito complexo”, destacou na audiência à Comece, uma vez que os países da UE estão “envolvidos em múltiplas alianças, interesses, estratégias, uma série de forças que é difícil fazer convergir em um único projeto” contra a guerra que, ressaltou na mesma ocasião, “não pode e não deve mais ser considerada como uma solução para os conflitos”.
A mensagem da “Pacem in Terris”
Palavras que reverberaram na bênção Urbi et Orbi da Páscoa, acompanhadas da súplica para que Deus abra os corações de toda a comunidade internacional para que trabalhe para pôr fim “a todos os conflitos que mancham o mundo de sangue”. Francisco também se dirigiu aos chefes das nações no aniversário de 60 anos da Pacem in Terris de São João XXIII (11 de abril de 2023), pedindo-lhes que se inspirassem em seus planos e decisões nessa encíclica dirigida à Igreja e ao mundo no auge da tensão entre os dois blocos da Guerra Fria. Uma mensagem, a do Papa Roncalli, muito oportuna, como fica evidente na seguinte passagem: “As relações entre as comunidades políticas, como aquelas entre os seres humanos individuais, devem ser reguladas não pelo recurso à força das armas, mas à luz da razão, isto é, na verdade, na justiça, na solidariedade operante”.
Esforços criativos pela paz
“Onde estão os esforços criativos pela paz?”, perguntou o Papa na Hungria, que se tornou um local de refúgio para milhares de refugiados ucranianos, durante seu discurso às autoridades civis e políticas em sua viagem de abril de 2023.
No mundo em que vivemos, a paixão pela política comunitária e pelo multilateralismo parece não passar duma linda recordação do passado: parece-nos assistir ao triste ocaso do sonho coral de paz, enquanto avançam os solistas da guerra.
Não apenas denúncias, mas também perspectivas do Papa que, no voo de volta de Budapeste, disse aos jornalistas: “creio que a paz sempre se faz, abrindo canais; nunca se pode fazer uma paz, fechando. A todos convido a abrir relacionamentos, canais de amizade. Isto não é fácil”. “Interessa a todos o caminho da paz. Eu estou disposto, estou disposto a fazer o que for preciso”, acrescentou o Pontífice, antecipando o início de uma missão que mais tarde viria a ser a do cardeal Matteo Maria Zuppi como seu emissário em Kiev, Moscou, Washington e Pequim.
Um mundo sem ódio e sem armas
Foi uma missão que se cristalizou à medida que se desenrolava, a de Zuppi, satisfazendo o desejo do Papa de um esforço também de “criatividade”. “No oceano da história, estamos a navegar num momento tempestuoso e sente-se a falta de rotas corajosas de paz. Olhando com grande afeto para a Europa, no espírito de diálogo que a carateriza, apetece perguntar-lhe: Para onde navegas, se não ofereces percursos de paz, vias inovadoras para acabar com a guerra na Ucrânia e com tantos conflitos que ensanguentam o mundo? “, perguntava Francisco em discurso às autoridades em Lisboa, o primeiro compromisso da viagem em Portugal para a JMJ, durante a qual se encontrou com um milhão e meio de jovens. Aqueles que, como enfatizou na Audiência Geral da quarta-feira sucessiva, “mostraram a todos que outro mundo é possível: um mundo de irmãos e irmãs, onde as bandeiras de todos os povos tremulam juntas, lado a lado, sem ódio, sem medo, sem fechamentos, sem armas!”.
A hora sombria da história
Um sonho, esse do Papa, posto à prova pelos acontecimentos de 7 de outubro. A expressão do seu rosto era fechada e sua voz sentida quando o Pontífice, no Angelus do dia seguinte aos ataques do Hamas, em 8 de outubro, deplorava a violência que “explodiu ainda mais ferozmente” em Israel e, da janela do Palácio Apostólico, disse: “por favor, parem com os ataques e com as armas, e compreendam que o terrorismo e a guerra não conduzem a nenhuma solução, mas apenas à morte e ao sofrimento de tantos inocentes. A guerra é uma derrota: todas as guerras são uma derrota!”.
Sempre uma derrota
“A guerra é uma derrota”, também esse um leitmotiv recorrente desses últimos meses do pontificado. Para alguns, talvez seja uma expressão ingênua demais, mas como se pode definir uma “vitória” a morte em massa de milhares dos próprios cidadãos, na maioria das vezes civis inocentes?
“Uma catástrofe humanitária”: assim que o Papa já descrevia a situação em Gaza, nem mesmo dez dias após a resposta armada de Israel.
Que as armas silenciem! Que se ouça o grito de paz dos povos, das pessoas, das crianças! Irmãos e irmãs, a guerra não resolve nenhum problema, apenas semeia a morte e a destruição, aumenta o ódio e multiplica a vingança. A guerra cancela o futuro.
A exortação encerrou a Audiência Geral de 18 de outubro, na qual Francisco anunciou o dia de jejum e oração de 27 de outubro em São Pedro. Um momento de oração e penitência em “uma hora sombria da história”.
Uma hora que parece durar um século e uma escuridão que envolve milhares de pessoas, tiradas de suas terras, lares ou da própria vida. “Não” é a única resposta. “Dizer ‘não’ à guerra, a todas a guerra, à própria lógica da guerra, que é viagem sem destino, derrota sem vencedores, loucura indesculpável”, o Papa disse na Urbi et Orbi no Natal.
O povo, que não quer armas mas pão, que tem dificuldade em acudir às despesas quotidianas e pede paz, ignora quanto dinheiro público é destinado a armamentos. E, contudo, devia sabê-lo! Fale-se disto, escreva-se sobre isto, para que se conheçam os interesses e os lucros que movem os cordelinhos das guerras.
A coragem da negociação
E esse “não” deve ser acompanhado de ações concretas. O Papa Francisco sugeria isso em seu discurso para o corpo diplomático credenciado junto à Santa Sé: “não se pode deixar continuar um conflito, que se está gangrenando cada vez mais, com dano para milhões de pessoas, mas é preciso que se ponha termo à tragédia em curso através da negociação, no respeito pelo direito internacional”.