Beatificação de Padre Victor
Por: Cardeal Orani João Tempesta, Arcebispo de São Sebastião do Rio de Janeiro
No sábado à tarde, dia 14 de novembro deste, foi beatificado o Padre Victor na cidade de Três Pontas, em Minas Gerais, Diocese da Campanha. Foi um momento memorável para a Igreja do Brasil. Devemos conservar no coração, na mente e nos gestos esses sinais que a providência de Deus nos faz enxergar nos dias de hoje.
A história de Padre Francisco de Paula Victor, carinhosamente conhecido como Padre Victor, “campanhense-trespontano” (segundo a excelente obra de seu biógrafo Monsenhor José do Patrocínio Lefort), começa em um casarão na Rua Direita da Campanha (MG) de 1827. Foi ali que ele nasceu no dia 12 de abril. O primeiro documento consta que ele foi batizado oito dias depois pelo padre Antônio Manoel Teixeira. Cidade mais antiga do Sul de Minas, àquela época a vila da Campanha da Princesa da Beira reunia fazendeiros em busca de ouro e seus escravos.
Victor nasceu escravo, mas não viveu como um. Veio ao mundo na casa de dona Marianna Bárbara Ferreira, que, de forma contrária à época, tratava os escravos da casa com dignidade. Por Victor, o carinho foi maior ainda e ela se tornou sua madrinha. Sob sua tutela, ele aprendeu a ler, escrever, tocar piano, falar em francês. Aprendeu até a sonhar.
Conta-se dessa época que Victor fazia o que pediam como um escravo, “porque não era trabalho para ele”. O grande Bispo de Mariana, o Servo de Deus Dom Antônio Ferreira Viçoso, interferiu na medida do possível para que ele fosse tratado como aluno, e como a água que aos poucos fura a pedra, ao se formar no vetusto Seminário São José, o desprezo dos colegas foi transformado em no mínimo respeito e muita admiração. “Foi muito difícil, mas ele superou com muita dignidade, com muita paciência, humildade”, finaliza o atual Bispo da Campanha, nosso venerável irmão Dom Frei Diamantino Prata de Carvalho, OFM, que tanto lutou para esta Beatificação. O jovem negro ex-escravo se tornava padre do clero de Mariana, primeira diocese de Minas totalmente desmembrada da então Diocese de São Sebastião do Rio de Janeiro.
O primeiro campo de trabalho do novo sacerdote foi a sua cidade da Campanha. Depois. Padre Victor chegou à pequena vila de Três Pontas em junho de 1852 para substituir o vigário da paróquia que havia morrido. Ironicamente, segundo consta no livro de Passarelli, a origem de Três Pontas está ligada a duas aldeias de negros fugitivos (quilombos), e para destruí-las, o governo da Capitania de Minas Gerais encarregou dois capitães. Após a missão concluída, eles dividiram o território em lotes, de que tomaram posse.
À época em que o padre negro chegava a Três Pontas, a vila reunia em sua maioria fazendeiros que faziam riqueza com o trabalho dos escravos. E se no Seminário de Mariana, onde Deus é invocado todos os dias, a reação em aceitar um padre negro foi difícil, em Três Pontas ela poderia ter se tornado uma tragédia.
“Ele também não foi bem recebido em Três Pontas”, continua Dom Diamantino. “O povo simples o aceitava bem, mas os “graúdos”… Por exemplo, o Visconde de Boa Esperança falava: ‘nós pedimos um padre sábio, um padre bom e manda aqui um “negão”’. Mas, Padre Victor, foi para amar o povo e perdoar os inimigos”.
E foi preciso muita sabedoria e persistência para derrubar o grande preconceito que havia na época. Ele passou por agressões, missas rezadas para uma igreja praticamente vazia, piadas ofensivas. Mas a bondade e a caridade que o religioso continuou a dedicar aos moradores da vila, apesar de todas as humilhações, pouco a pouco conquistou até os fazendeiros mais ricos da região e ele passou a ser conhecido como o lendário padre negro de Três Pontas.
Desse período, tudo que se conta foi passado de família a família e todos os depoimentos foram reunidos na pesquisa histórica para o processo de beatificação, que foi uma iniciativa de nosso saudoso e muito estimado Dom Aloísio Roque Oppermann, SCJ, que como Bispo Coadjutor da Campanha pediu o apoio dos bispos que formam o regional Leste 2 da CNBB para a abertura do processo e, na sua última visita ad limina apostolorum, já como quinto Bispo Diocesano da Campanha, protocolou o processo na Congregação da Causa dos Santos, em Roma. Muitos se lembram de sua voz grave e de sua personalidade rígida, justa, porém bondosa. Padre Victor morava em um casarão simples e vivia praticamente de doações.
As crianças o adoravam. Em determinado momento, Padre Victor resolveu profissionalizar a educação e fundou uma escola, a primeira de Três Pontas. Ali reuniu filhos de gente simples e gente rica para aprender de professores que trouxe de fora e dele mesmo. Deu aulas no Colégio Sagrada Família até quando a saúde dele permitiu. Logo depois, iniciou a reforma da capela para se tornar a Igreja Matriz de Nossa Senhora D’Ajuda, até hoje em pé em Três Pontas, e onde estão imunados seus restos mortais.
Mas para tornar esses planos realidade foi preciso muito dinheiro. Mesmo precisando investir nas duas obras, Padre Victor não diminuiu seu lado caridoso e continuou dando tudo o que tinha para todos. De repente, o dinheiro começou a faltar e as dívidas se acumularam.
Uma denúncia foi feita ao Bispado de Mariana sobre os títulos não pagos (ainda) pelo padre de Três Pontas, e Victor foi chamado a prestar contas ao bispo. Conta-se que ao chegar à sala de Dom Viçoso, seu velho padrinho, Victor colocou seu chapéu na parede e ele permaneceu dependurado, mas no lugar não havia gancho para segurar o chapéu.
Triste com sua desorganização financeira, Padre Victor voltou para Três Pontas com uma decisão drástica: iria pedir demissão da paróquia já que um grande mal havia feito (sem querer) para aquela comunidade. Os moradores se espantaram com a possibilidade de perder o pároco querido e resolveram fazer algo.
Conta-se que em uma noite se reuniram todos na porta da casa do padre e lhe entregaram um envelope com todas as suas dívidas quitadas. O povo mesmo reuniu dinheiro para isso e o fizeram prometer que não deixaria Três Pontas.
Ali, naquela cidade bonita do abençoado Sul de Minas, solo sagrado que germina santos para a Igreja Católica, Padre Victor permaneceu por 53 anos até deixar este mundo, com odores públicos de santidade. Morreu, piamente, no dia 23 de setembro de 1905 após ter um Acidente Vascular Cerebral (AVC). Sua escola formou pessoas importantes para a região, como o primeiro bispo da Campanha, o Conde Dom João de Almeida Ferrão, e o médico Samuel Libânio (que hoje dá nome ao hospital de Pouso Alegre – MG).
Para a beatificação foi necessário comprovar um milagre. Este, realizado por intercessão de Padre Victor, foi de uma mulher que segundo a medicina era impossível ter filhos. Tempos acorrendo sua intercessão, eis que ela conseguiu engravidar e tudo isso se deu pelas bênçãos do futuro beato Padre Vitor.
O Papa Francisco assinou o decreto de beatificação de Padre Victor no dia 5 de junho de 2015. A cerimônia contou com a presença do nosso amado irmão, o Venerável Angelo, Cardeal da Santa Igreja Romana Amato, Prefeito da Congregação para os Santos, no dia 14 de novembro p.p., cerca de uma semana antes do Dia da Consciência Negra – já que o religioso foi exemplo de quem venceu as barreiras do preconceito.
Quero, genuflexo, diante da santidade do presbítero Francisco de Paula Victor, pedir a sua intercessão e patrocínio para todos os padres do nosso tempo, para que, seguindo o seu exemplo eloquente de desprendimento, de amor aos mais pobres, de generosidade, de doação de si em favor dos mais desfavorecidos, sejamos, dentro do Ano da Misericórdia que está para se iniciar, presbíteros como a imagem aprovada apresenta Padre Victor: um presbítero que vive e gasta a sua vida pelo anúncio da Palavra de Deus, carregando a Cruz de Cristo e anunciando-a como caminho bonito e virtuoso de se santificar neste mundo para ganhar o céu.
Que o exemplo do Padre campanhense-trespontano nos ensine a virtude da misericórdia, do serviço generoso e de gastar nossa vida com Cristo, por Cristo e em Cristo e em favor da Igreja e de todos os fiéis batizados.
Beato Padre Victor, rogai por nós!