Começa a ser debatido na quarta-feira, 17, no plenário do Senado, o anteprojeto de lei para a revisão e atualização do Código Civil brasileiro (Lei 10.406/2002).
Por Daniel Gomes / O São Paulo
A minuta do texto foi elaborada por uma comissão de juristas, criada em agosto de 2023 pelo senador Rodrigo Pacheco, presidente do Senado. Os trabalhos, concluídos em 5 de abril, resultaram em um anteprojeto com propostas de alterações em mais de mil artigos do Código atual.
Em nota publicada no início de março, a União Brasileira de Juristas Católicos (Ubrajuc) e outras uniões e associações de juristas católicos criticaram o fato de o texto ter sido elaborado em tão curto espaço de tempo e sem o devido amplo debate.
“Em linhas gerais, preocupam-nos os pontos relacionados ao direito de família, liberdade de expressão, bem como a proteção ao direito de propriedade e ao direito à vida. Há tantas mudanças no projeto de atualização que os juristas que não pertencem à comissão muitas vezes têm dito entre si que se trata na verdade de um novo Código e não de uma mera atualização”, ressaltou ao O SÃO PAULO o advogado Miguel da Costa Carvalho Vidigal, doutorando em Direito Civil pela USP e presidente da Ubrajuc.
Formação e dissolução das famílias
Entre os pontos vistos com preocupação estão as mudanças para se flexibilizar tanto os trâmites para casamentos quanto para divórcios.
“De forma simplificada, pode-se dizer que se pretende permitir que o casal vá ao cartório e saia casado no mesmo dia. Ante a solenidade do casamento, consideramos importante manter as formalidades, não apenas para que os noivos reflitam mais sobre esta importante decisão, mas, também, para que se investigue eventuais impedimentos. Outro aspecto preocupante é a possibilidade do divórcio unilateral em cartório, que vem sendo chamado de divórcio ‘surpresa’ por diversos especialistas. A proposta permite que apenas um dos cônjuges se dirija ao cartório e já saia de lá divorciado. O outro cônjuge só saberá disso tempos depois quando for notificado”, observa Vidigal. “Não nos parece uma atualização e sim uma modificação completa da concepção de família”, ressalta.
O advogado Maurício Pereira Colonna Romano, especialista em regulação econômica pela FIPE e diretor da União Juristas Católicos de São Paulo (Ujucasp), recorda que após os posicionamentos das várias uniões de juristas católicos, a comissão de redação retirou do texto do anteprojeto o dispositivo que se referia às famílias não conjugais. Entretanto, “ainda restaram as referências à afetividade como elemento do parentesco. Preocupa-nos o avanço do processo de desprestígio da adoção, que pressupõe cautelas tais como a prévia investigação psicossocial e a intervenção do Ministério Público. Na prática, tal investigação inexiste para o reconhecimento do parentesco afetivo, o que pode resultar em burla ao processo de adoção e em graves riscos para crianças e adolescentes”, alerta.
Vidigal destaca que no entendimento da Ubrajuc, “qualquer tipo de reconhecimento de direitos similares aos do casamento para uniões concubinárias resultaria na evidente contrariedade do texto de nossa Constituição Federal, que consagra a monogamia e a fidelidade no casamento e na união estável. Se procurarmos a bigamia no texto da proposta de reforma não vamos encontrar a menção explícita, porém, quando lemos os termos dos artigos que tratam das consequências das relações bígamas, a solução é uma evidente aprovação da infidelidade conjugal”.
‘Duas pessoas’ em lugar de ‘homem e mulher’
Outra mudança proposta é a de substituir as menções aos gêneros “homem” e “mulher” por “duas pessoas” ao se referir ao casamento e uniões civis.
O advogado Venceslau Tavares Costa Filho, Doutor em Direito Civil pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e professor da Universidade de Pernambuco (UPE) e da UniFafire, lembra que na Constituição de 1988 os indivíduos são tratados expressamente como “homem” e “mulher”, mas que na última década tem havido pressões em favor da ‘neutralidade’ com o uso do termo ‘pessoa’. “Na prática, muda-se o fundamento filosófico e ideológico da legislação e assume-se a suposta neutralidade de gênero advinda da ideologia/teoria de gênero – repudiada pela Igreja e inclusive bem recentemente pelo Papa Francisco”, explica.
Costa Filho também comenta sobre o fato de o projeto acrescer ao Código os direitos de animais nas relações com os humanos. “Causa estranheza ver que no texto se fale em relações afetivas entre pessoas e animais. É o que vem sendo chamado de família multiespécie. Não obstante o cuidado que devemos ter em relação aos animais, parece-nos óbvio que não se deva reconhecer juridicamente a eles o status de membros da família”, observou. “Por outro lado, ao mesmo tempo, o projeto parece permitir a gestação subrogada – popularmente conhecida como barriga de aluguel – e a doação de gametas. Ou seja, a mesma proposta que personaliza os animais, ao reconhecê-los como sujeitos de relações jurídicas, parece reduzir as pessoas e partes do corpo humano a meros objetos de contratos”, constata.
Sociedade em alerta
Maurício Romano recorda que o texto com as propostas de mudanças no Código Civil ainda deverá passar pelo crivo dos senadores e deputados federais: “Nossa esperança é de que se possa ter um debate amplo, artigo por artigo, e que se chegue a um ponto que contemple os reais anseios da população e menos as pautas de grupos minoritários de pressão”.
Miguel Vidigal, por sua vez, pede que todos acompanhem atentamente a tramitação da proposta de alteração do Código Civil “para que se garanta que os valores da sociedade permeiem a lei. O melhor caminho para isso é pressionar os políticos para que se importem com o tema, mas também fomentar grupos organizados que atuem junto aos Poderes Legislativo e Judiciário de forma técnica e profissional. E se importar inclui não apenas ‘atacar’ os textos propostos, mas procurar participar da redação deles. Pressionar para que os integrantes de órgãos consultivos tenham um certo grau de afinidade”.
Veja alguns tópicos do projeto
– O Conceito de família seria ampliado. Hoje é reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher. O projeto alarga este reconhecimento para aquelas formadas por mães ou pais solos e a qualquer grupo que viva sob o mesmo teto com responsabilidades familiares;
– As menções “homem e mulher” para se referir à constituição de casal e família são substituídas por “duas pessoas”, independentemente de seus gêneros;
– Cria-se o divórcio unilateral, ou seja, uma só pessoa do casal poderá requerer a separação, no cartório onde foi registrada a união. Depois, o outro cônjuge receberá uma notificação a respeito;
– É prevista a simplificação do processo de habilitação para o casamento em Cartório de Registro Civil, de modo que bastaria que, ao requerimento dos nubentes, o oficial do Cartório fizesse uma checagem de dados em um sistema eletrônico (destaque-se, porém, que as informações nem sempre estão atualizadas e que com as publicações das proclamas há mais tempo para a manifestação de eventuais impedimentos);
– No que se refere à reprodução assistida, o projeto proíbe que esta técnica seja usada para criar seres humanos geneticamente modificados, bem como embriões para investigação científica. Também é vedada a comercialização de óvulos e espermatozoides, mas se permite a doação destes materiais genéticos;
– Os animais passam a ser reconhecidos juridicamente como seres com sentimentos e direitos.
(Com informações da Agência Senado e G1)